Artigo de Drauzio Varella denuncia a cumplicidade das plataformas digitais na disseminação de crimes contra a saúde
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Até quando?
Estelionatários acobertados
Por Drauzio Varella
Quadrilhas de estelionatários estão cometendo crimes contra a saúde pública com a cumplicidade do Instagram e do Facebook. Utilizando meu nome e minha voz — manipulada por inteligência artificial — esses criminosos divulgam falsos anúncios de remédios com o objetivo de enganar pessoas de boa-fé.
O que você faria se estivesse no meu lugar, prezado leitor?
Já tomei todas as providências possíveis. A primeira foi entrar em contato com a Meta, proprietária das plataformas citadas, para alertar que os vídeos divulgados eram criminosos. Mas com quem falar, se não existe um responsável direto por esses casos?
Mesmo com minha insistência a cada novo vídeo, meus e-mails deixaram de ser respondidos. No máximo, recebi respostas automáticas afirmando que as publicações “respeitavam as normas da plataforma”.
Diversas vezes solicitei à Meta os nomes dos responsáveis por esses golpes. Sempre se negaram a identificá-los. Na prática, acobertam esses falsários — afinal, são pagos por eles para impulsionar suas mensagens enganosas.
Explico melhor: você grava um vídeo em casa e o publica na rede. Quantas pessoas o verão? Dezenas? Centenas? Agora, se pagar ao Facebook ou ao Instagram, ele será impulsionado para atingir milhares — ou até milhões. Em outras palavras, as plataformas são cúmplices desses crimes cometidos à luz do dia.
Quando percebi que estavam mancomunadas com os golpistas, o passo seguinte foi contratar um escritório de advocacia especializado na área criminal. Os advogados me orientaram a apresentar uma denúncia ao Ministério Público de São Paulo.
Em uma tarde, o doutor Igor Tamasauskas e eu fomos à Promotoria. Fomos bem recebidos pelos promotores, que adotaram medidas legais para obrigar as plataformas a identificar os autores dos golpes.
A situação é tão absurda que, no início do ano, uma empresa chamada BritesFlix chegou a anunciar um curso online para “ensinar a produzir propaganda fraudulenta com ajuda de ferramentas de inteligência artificial, a fim de vender produtos irregulares”.
A jornalista Isabela Aleixo, do UOL, se matriculou no curso para apurar o caso. Em sua reportagem, ela relatou:
“A turma de que o UOL Confere participou possuía mais de 600 inscritos no grupo de WhatsApp da mentoria. Cada aluno pagou R$ 1.097 pelo curso. Os alunos são orientados a criar perfis e páginas falsas no Facebook para veicular os anúncios… também aprendem a dar calote na Meta por meio de cartões virtuais.”
Após a denúncia, o juiz Gustavo Marzagão determinou que a plataforma da BritesFlix, comandada por um tal Daniel Brites, removesse os vídeos falsos atribuídos a mim.
Na reportagem, Isabela Aleixo incluiu um vídeo em que o próprio Brites explica o golpe e afirma que “a chance de dar problema com a Justiça é muito pequena”.
Se você, leitor otimista, acredita que o caso foi resolvido, engana-se. Raramente passa uma semana sem que eu receba novos vídeos com minha imagem e voz falsificadas — às vezes dois ou três no mesmo dia.
O problema é que nossa legislação ainda não consegue punir esse tipo de fraude. A única forma de agir de acordo com a lei seria se o Instagram e o Facebook, empresas da Meta, se recusassem a aceitar o dinheiro sujo dessa parceria com criminosos virtuais.
É absurdo que aleguem “liberdade de expressão” para justificar a veiculação de golpes.
Por que esses vídeos nunca aparecem no YouTube? Como essa plataforma consegue detectá-los e bloqueá-los? Isso mostra que, sim, existem ferramentas capazes de impedir que golpistas cometam crimes contra a saúde pública.
Fico indignado ao ver meu nome usado por gente da pior espécie, em conluio com essas plataformas, depois de quase 60 anos de profissão. É assustador perceber que até pessoas esclarecidas caem nessas armadilhas, acreditando que estou indicando produtos milagrosos para curar doenças ou emagrecer rapidamente.
É profundamente triste ser abordado na rua por pessoas humildes perguntando por que “meu remédio”, que custou tão caro, não funcionou.
Drauzio Varella
Médico cancerologista e autor de “Estação Carandiru”
Fonte: Folha de S.Paulo — 08/10/2025
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