Zacarias, Filho da Vontade de Deus – Por Maurício Saliba

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Lariane levava uma vida difícil. Tinha três filhos e estava grávida — de novo. O mais novo mal tinha dois anos e o mais velho cinco. Viviam espremidos num barraco onde mal cabiam dois, mas onde, milagrosamente, viviam cinco e meio.

Seu marido, Arcanjo — nome de anjo, temperamento de demônio — era alcoólatra não assumido, desses que dizem “só bebo socialmente” enquanto brigam com o copo. Desempregado, novamente, descontava na vida e em quem estivesse por perto.
Lariane trabalhava como faxineira e babá até tarde da noite. Sabia que não podia ter mais uma criança: seu salário mal dava pra enganar a fome dos que já tinham nascido. Desesperada, procurou o pastor José pra tirar uma dúvida teológica e prática: iria para o inferno se fizesse um aborto?
O pastor, com a serenidade de quem tem a barriga cheia e a alma em dia, respondeu:
— É claro que vai pro inferno! Jamais se tira uma vida!
Ela tentou argumentar:
— Mas minha patroa disse que ele ainda não tem cérebro e não vai sentir nada…
— Vai pro inferno! — repetiu o homem de Deus, sem titubear.
Dias depois, na televisão, ouviu um deputado engravatado e bem alimentado afirmar que “aborto é assassinato”. Falava difícil, com palavras de quem tem curso superior e consciência limpa. Devia estar certo, pensou.
Zacarias nasceu. O nome foi escolha do pastor: nome bíblico, garantia de bênção e proteção divina. Só esqueceram de avisar a Deus.
Pouco tempo depois, Arcanjo morreu numa briga de bar — Lariane ficou sozinha com quatro filhos. O que se chamava “vida” virou resistência. Quando a comida faltava, fazia as crianças dormirem pra enganar o estômago.
Zacarias cresceu no barraco. Passava os dias solto pelas vielas da comunidade, livre, como um pássaro sem gaiola — e sem ninho. A irmã do meio não “escutava direito, deve ser malandrice”, como dizia a mãe. O mais velho cuidava dos irmãos, fazia um mexido qualquer pra jantar, e esperavam a mãe voltar exausta.
Na escola, Zaca não se achava. Tinha que ficar sentado, quieto, ouvindo gente falando de coisas que pareciam de outro planeta. Concentrar era verbo desconhecido. Sua cabeça vivia voando, talvez porque sua realidade não cabia em caderno nenhum. Olhava para a lousa com um olhar perdido, como daqueles que estavam na escola apenas de corpo presente. Tentava se concentrar, mas escapava sempre.
À noite, tentava fazer as lições sob a luz fraca do barraco. Ninguém sabia ajudá-lo, e o barulho da casa e da rua compunham a trilha sonora da sua dispersão. Quando percebia, sua mãe já estava aos berros: “vai dormir menino!”.
Os amigos diziam:
— Escola é pros bacana, Zaca. Se quiser ostentação, é nos corre!
E Zaca acreditava. Na sua família ninguém havia estudado. Até a palavra estudar era coisa estranha, só bacana fala. Cresceu fracassando na escola — lugar triste e estranho onde sua energia era diagnosticada como “indisciplina”. A professora dizia que ele não se concentrava, e ele, sem saber o que era isso, achava que devia ser verdade. Afinal, ninguém o ensinara a parar.
Aos quinze anos, começou a trabalhar num mercadinho fora da comunidade. Passava horas em ônibus, gastando quase tudo o que ganhava. Carregava caixas o dia inteiro, já que, segundo o patrão, era “a única coisa que ele fazia direito”. Sentia-se um burro de carga, mas o pouco dinheiro ajudava em casa. Foi demitido por se atrasar — o transporte, sempre ele, atrasava mais que as promessas de melhora.
Arrumou outros bicos, sempre como burro de carga. Disciplina e concentração continuavam sendo palavras estrangeiras.
Mas havia uma coisa que ele fazia bem: ser invisível. Quando saía da comunidade, ninguém o via. Passava despercebido entre os engravatados, quase um fantasma urbano. Às vezes até tentava cumprimentar alguém, mas recebia o silêncio como resposta. O dom da invisibilidade era útil — mas doía.
Até que um dia, um amigo o convidou pra um “trabalho diferente”. Ganharia bem, seria respeitado, até admirado. Poderia ajudar a mãe, comprar as coisas que via na TV. Seria alguém, enfim. Só havia um detalhe: era perigoso. Alguns já tinham morrido.
Zaca pensou: “O que eu tenho a perder? Nada. E se morrer, não pode ser pior que aqui. O céu deve ser uma rua imensa cheia de crianças correndo”. Mas gostou da proposta, dessa vez, seria “gente”. Mesmo que por pouco tempo.
Entrou para o tráfico. Sentiu o gosto do poder, a sensação inédita de ser temido. Comprou o tênis dos comerciais, presenteava a mãe, comprou um aparelho pra irmã surda — agora ele fazia até a irmã ouvir. Era poderoso, e, no fundo, isso o acalmava.
Sua nova qualidade não era mais a invisibilidade, mas a crueldade. Descobriu que ser temido dava mais respeito que ser bom. A polícia era o inimigo — matava sem dó, e ele aprendeu a retribuir na mesma moeda.
Até o dia em que a moeda virou bala.
A mãe recebeu a notícia: operação policial na comunidade, Zacarias morto no chão. Correu, desesperada. Encontrou o corpo do filho estendido, moscas zumbindo como uma oração ao contrário.
A fome voltou, e a vida também — essa vida que nunca descansava. Lariane, envelhecida e resignada, voltou a limpar as casas das madames e cuidar dos filhos dos outros.
Certa noite, sentada diante da televisão, viu aquele mesmo deputado — o da entrevista sobre o aborto — comemorando a operação policial que matou seu filho. “Aborto é assassinato”, ele dissera um dia. Agora sorria diante das câmeras, celebrando a morte de um rapaz pobre.
Lariane não entendeu muito bem: quando foi que matar deixou de ser pecado? Mas não questionou. O pastor também já havia explicado que tudo era “vontade de Deus”. E Deus, pelo visto, continuava bem ocupado.

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Editor Ourinhos Online