O “POVO” NÃO SABE VOTAR? – Por Mauricio Saliba

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Sempre que alguém solta a frase “o povo não sabe votar”, dá pra ouvir o estalo do chicote da senzala ecoando lá no fundo da história. A pessoa fala com tanta convicção que parece até que ela mesma foi ungida pela razão, uma espécie de representante oficial da inteligência nacional. Mas, curiosamente, quem diz isso nunca se inclui no “povo”. É sempre o outro que é ignorante, manipulado, incapaz.

Essa mania de se colocar acima dos outros tem raízes profundas. Sérgio Buarque de Holanda, lá em 1936, tentou entender o que nos fazia tão diferentes dos europeus “racionais”. Em Raízes do Brasil, ele disse que o brasileiro era o tal “homem cordial”, mas não no sentido de “amável”, e sim de “emocional”, aquele que age com o coração (corde, em latim), e não com a razão.

A ideia parece bonita: o brasileiro é caloroso, gentil, de abraços largos. Só que Sérgio Buarque também avisou que isso tem um preço. Em vez de seguir regras e leis impessoais, a gente se guia pelas relações pessoais, pelo “favor”, pelo “jeitinho”, pela amizade. O problema é que quando tudo vira pessoal, o país nunca vira público. O Estado é moderno só no papel; na prática, continua sendo uma grande extensão do quintal de alguém.

Décadas depois, o sociólogo Jessé Souza pegou esse conceito e virou de ponta-cabeça. Para ele, o “homem cordial” não é o povo, mas a elite disfarçada de boazinha. Aquela que domina sorrindo, que manda com afeto, que explora dizendo “meu querido”. É a velha mentalidade de quem chamava o escravo de “quase da família” e ainda acha que a empregada também é, desde que continue no seu lugar.

Traduzindo: o patrão, o juiz, o empresário — aquele que sempre teve todas as vantagens — continua mandando, mas com um sorriso no rosto. Ele diz que o Brasil é assim mesmo, que somos todos cordiais, afetivos, calorosos. E o povo acredita. Afinal, quem vai discutir com alguém que parece tão “do bem”?

A frase “o povo não sabe votar” é o melhor exemplo de como essa cordialidade se transformou em moralismo de classe. Ela parece uma preocupação com o país, mas é só mais uma forma elegante de dizer “eles não sabem o que fazem”. É o mesmo racismo e elitismo de sempre, agora com ares de civilidade.

Quem diz isso se acha racional, moderno, educado, o oposto daquele povo “emocional” e “desinformado”. Mas é curioso: na hora de votar, muitos desses “racionais” escolhem pelo carisma, pela aparência, pela “boa família”. Votam por afeto — exatamente o que criticam nos outros.

No fundo, essa fala serve para limpar a consciência. Permite justificar privilégios (“eu consegui por mérito”), manter a desigualdade (“eles não se esforçam”) e ainda se sentir moralmente superior (“eu trabalho, pago meus impostos, sou do bem”). É a cordialidade virando hipocrisia.

Isso tudo vem de longe. Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, já dizia que a relação entre o senhor e o escravo era “afetiva”: o senhor se via como protetor, e o escravo, como “grato”. Sérgio Buarque transformou esse paternalismo em traço nacional, e Jessé mostrou o truque — o “afeto” era só uma forma de manter o controle.

O Brasil é cheio desses “senhores bondosos” que dão tapinha nas costas do povo enquanto decidem o futuro dele por cima. A elite brasileira aprendeu a dominar sorrindo. Não precisa gritar, basta parecer civilizada. E o povo, muitas vezes, aprende a agradecer.

Foi daí que nasceu o que Jessé chama de “moralismo de classe média”. A classe média se vê como o exemplo da virtude: trabalhadora, honesta, civilizada. E projeta no pobre tudo o que despreza: preguiça, ignorância, perigo. Quando o pobre começa a aparecer demais — quando ocupa a universidade, viaja de avião, vota diferente — a cordialidade se transforma em raiva moral.

É o moralismo de quem acha que o país seria ótimo se não fosse o povo. De quem acredita que votar é um ato técnico, e não político. De quem acha que a democracia seria perfeita se todos pensassem igual a ele.

A cordialidade, que um dia foi vista como traço de simpatia nacional, hoje serve de verniz moral para manter tudo como está. Ela adoça o veneno da desigualdade. E o discurso de que “o povo não sabe votar” é só mais uma colherada desse açúcar amargo.

Talvez o problema não seja o povo. Talvez o problema seja quem nunca aceitou que o povo também é gente, e que, às vezes, vota contra quem sempre sorriu para ele enquanto lhe puxava o tapete.

No fim, o verdadeiro “homem cordial” é aquele que domina com carinho, que exclui com elegância, que chama de “meu amigo” antes de te cortar a verba. É o mesmo de sempre, só que agora com cara de cidadão de bem.

E se o povo não sabe votar, talvez seja porque ainda está aprendendo a votar contra o coração — especialmente contra o coração falso dos que fingem ter um.

— Colunista Maurício Saliba

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Editor Ourinhos Online