Não confunda capitalismo com democracia Por Maurício Saliba
Compartilhe
Há uma confusão muito conveniente circulando por aí, e ela não é de hoje. Muita gente acredita (ou é levada a acreditar) que capitalismo e democracia são praticamente a mesma coisa. Que basta um país adotar o capitalismo para, automaticamente, se tornar uma democracia. Nada mais falso, e nada mais útil para quem quer vender um modelo econômico como se fosse também um modelo de liberdade.
Quando um país deixa de ser comunista ou de economia planificada e adota o capitalismo, é comum ver manchetes e discursos apressados dizendo que “finalmente” ele se tornou uma democracia. Foi o que se sucedeu com vários países do Leste Europeu após o fim da União Soviética, e também com a versão “capitalista” da Rússia. No entanto, o fato é que capitalismo e democracia pertencem a esferas diferentes. O primeiro é um modo de produção, ou seja, uma forma de organizar a economia e o trabalho. Já a democracia é um sistema político, uma forma de distribuir e legitimar o poder entre os cidadãos.
Parece simples, mas essa distinção básica é ignorada, e muitas vezes de propósito. O capitalismo pode funcionar muito bem em regimes autoritários. A Rússia, por exemplo, é um mercado capitalista pujante em muitos aspectos: privatizações, oligarcas, corporações, integração no mercado global. Mas alguém ousaria chamá-la de uma democracia plena? Não mesmo. A combinação de controle político, repressão da imprensa, concentração de poder, evidenciam que capitalismo é diferente de democracia.
A imprensa pode até ser livre formalmente, mas isso não significa que seja independente. No fim das contas, ela também é uma empresa, movida por lucros, publicidade e interesses de mercado. Quando a liberdade de imprensa depende de grandes anunciantes e conglomerados econômicos, o que se chama de “liberdade” é, na verdade, liberdade para o capital falar. Assim, o jornalismo que deveria fiscalizar o poder acaba muitas vezes servindo como seu porta-voz, defendendo o próprio sistema que o sustenta.
Outro exemplo ilustrativo: Arábia Saudita, economia de mercado, riqueza gerada pelo petróleo, empresas privadas, redes de investimento global. Mas regime monárquico absoluto, sem eleições livres ou alternância real de poder, sem pluralismo político. Capitalismo sim; democracia, nem de longe.
Se olharmos para a história recente do Brasil, a confusão continua. Somos um país capitalista há pelo menos um século, e nem por isso fomos sempre democráticos. Tivemos o Estado Novo de Getúlio Vargas e a ditadura militar de 1964, ambos regimes autoritários. O capitalismo não precisou da democracia para funcionar nesses períodos: as fábricas continuaram produzindo, o comércio continuou lucrando e o capital se concentrou nas mãos de poucos.
E olhemos também para um dos regimes que mais se proclamam democráticos: os Estados Unidos. São, sem dúvida, uma democracia, com instituições, eleições regulares, alternância, mas não se engane: não é uma democracia plural e dinâmica como alguns imaginam. O país opera há mais de 150 anos, na verdade desde meados do século XIX, sob a mesma lógica de dois partidos dominantes (Partido Democrata e Partido Republicano) que se revezam no poder, com enorme barreira à emergência de uma alternativa política significativa. Esse arranjo, embora funcional, limita a efetiva pluralidade de poder, pra além do discurso “um povo livre decide”.
Essa coincidência entre capitalismo e democracia é, portanto, mais mito do que realidade. Historicamente, o capitalismo se adaptou a diferentes regimes: monarquias, ditaduras, democracias liberais, teocracias. O que o capitalismo precisa, de fato, é de estabilidade para os negócios, segurança jurídica (muito relativa) e mão de obra disponível, não necessariamente de liberdade política ou igualdade cidadã.
Muitas vezes, aliás, a democracia atrapalha os negócios. Quando o povo começa a reivindicar direitos demais, quando sindicatos se fortalecem ou quando a pressão popular ameaça os lucros, o sistema reage: a democracia precisa ser “suspensa”. É nesse momento que surgem as ditaduras, sempre em nome da “ordem” e da “estabilidade” ou “combatendo a corrupção”. Mas, curiosamente, assim que a engrenagem capitalista volta a girar, os investimentos se restabelecem e os lucros se garantem, a “democracia” retorna, limitada, controlada e higienizada, apenas o suficiente para manter as aparências e a confiança do mercado.
A confusão, portanto, não é inocente. Ela serve a um propósito ideológico: associar o capitalismo à liberdade, à cidadania, aos direitos humanos, tudo o que, na prática, ele nem sempre garante. O discurso liberal que domina grande parte da mídia e da política internacional tenta vender a ideia de que “mercado livre” é o mesmo que “povo livre”. Mas basta olhar ao redor para perceber que há muitas economias de mercado sem imprensa livre, sem sindicatos autônomos, sem eleições justas.
É hora de parar de misturar as coisas. A democracia é uma conquista política, resultado de lutas sociais, de participação popular e de limites impostos ao poder. O capitalismo é um sistema econômico, baseado na propriedade privada e no lucro. Às vezes, um alimenta o outro; às vezes, entram em choque.
Confundir capitalismo com democracia é o mesmo que acreditar que basta comprar um smartphone caro para ter liberdade de expressão. Um engano conveniente, mas perigoso, porque quanto mais se confunde consumo com cidadania, mais fácil fica aceitar um regime que oferece shoppings lotados e redes sociais vibrantes, mas cala a voz de quem ousa discordar.
Em tempos de _fake news_ e propaganda disfarçada de análise política, convém lembrar: nem todo país capitalista é livre, e nem toda democracia precisa se ajoelhar diante do mercado. Democracia se faz com direitos, igualdade e participação popular, não com lucros.
Apoie o Ourinhos.Online⬇️
https://apoia.se/ourinhosonline
