Morada interior Por Paula Hammel
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Durante anos, imaginei que concluir etapas equivalia a apagar lembranças. Supunha que cada ação pudesse extinguir ferimentos e abrir horizontes inéditos. Ilusão constante. Nada desaparece por completo; apenas altera o percurso.
Em certo período, evitava confrontar recordações distantes. Preservava memórias como quem protege cicatrizes: sem contato, para não sentir ardor. O cotidiano, entretanto, prosseguia. Certa manhã, a luz atravessou o vidro com suavidade e notei inexistir qualquer razão para adiar retorno. Inspirei fundo e avancei.
O recôndito permanecia silencioso, recoberto por sua película de expectativa. Paredes exibiam fotografias inclinadas, piso rangia sob passos cuidadosos. Percorri compartimentos devagar, observando sinais de existência retida: volumes de páginas abertas, bilhetes incompletos, utensílios esquecidos. Cada espaço requeria atenção.
Sentei-me na sala e escutei, da rua, murmúrios distantes. O universo seguia acelerado, indiferente às descobertas. Lá fora, rumores e movimentos; aqui dentro, serenidade concentrada. O sossego transformou-se em abrigo. Compreendi que não se tratava de eliminar acontecimentos passados, mas de oferecer morada ao que ainda pulsava internamente.
Deslizei meus dedos sobre superfícies e marcas antigas. Não experimentei saudade, apenas reconhecimento. O cenário habitual aparentava renovação. A passagem da existência não destruía: modificava percepção; a carga anterior repousava leve.
Na cozinha, abri a janela. Uma brisa trouxe a fragrância da tarde, e a luminosidade evidenciou partículas douradas por um breve instante. Tudo encontrou equilíbrio entre o que passou e o que surgia. Inspirei pausadamente, e constatei que atravessar o espaço íntimo não significava apagar recordações, mas permitir que acontecimentos se movimentassem de forma inédita.
O trajeto desdobrava-se em etapas reservadas. Nenhuma iniciava com alarde. Eventualmente, o corpo acomodava-se de maneira distinta. Dores dissolviam-se em calma; o ritmo impunha compasso próprio. Compreender o instante implicava aceitar “andamento” pessoal, sem pressa nem imposição.
Ao percorrer cada recesso do mundo interior, compreendi que minha renovação não dependia de gestos externos. Cada passo consciente, cada observação detalhada e cada silêncio profundo consolidaram meu despertar pessoal. A serenidade emergiu da aceitação do que passou e do que despontava; enfim, reencontrei-me por completo, inteira, imune à necessidade de aprovação alheia.
Paula Hammel
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