A Morte à Beira do Tabuleiro: o Rio de Janeiro e “O Sétimo Selo” – Por Bruno Yashinishi
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Os recentes episódios de violência no Rio de Janeiro, marcados por mais uma chacina, reacendem uma ferida que nunca cicatriza. O sangue nas ruas, os gritos, a ausência de respostas e a banalização da vida se tornaram parte de um cenário que, lamentavelmente, já não surpreende. A cidade parece viver em estado de luto permanente, um luto sem fim e sem nome.
Ao observar essa realidade, é impossível não lembrar do clássico O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman. No filme, um cavaleiro medieval, retornando de uma cruzada, encontra a Morte e a desafia para uma partida de xadrez. Ele busca ganhar tempo, mas, acima de tudo, busca compreender o sentido da existência diante da destruição e do silêncio de Deus. A metáfora criada por Bergman fala de uma humanidade assombrada pela morte e pela dúvida, um retrato que se encaixa, tristemente, no que vivemos hoje.
No tabuleiro carioca, as peças são movidas por forças desiguais: o tráfico, as milícias, os interesses políticos e, infelizmente, também por agentes do Estado que traem a função pública que deveriam exercer. A cada jogada, uma operação policial mal planejada, uma decisão tomada sem transparência, uma bala “perdida” que nunca é realmente perdida, novas vidas são sacrificadas. E, assim como no filme, a Morte nunca abandona o jogo, ela observa, paciente, sabendo que sempre vencerá no final.
A grande tragédia do Rio é que a morte se tornou previsível, quase institucionalizada. O número de mortos é contabilizado, noticiado e, logo depois, esquecido, até que uma nova chacina venha ocupar o mesmo espaço na manchete. É o ciclo da indiferença. Enquanto isso, mães enterram filhos, comunidades choram seus moradores e o Estado, muitas vezes refém de seus próprios agentes desviados, segue movendo peças sem enxergar o tabuleiro inteiro.
Em O Sétimo Selo, o cavaleiro tenta encontrar sentido na fé, mas o silêncio divino o atormenta. No Rio, o silêncio vem de outro lugar: das autoridades que não prestam contas, das instituições que falham e de uma sociedade que, cansada, parece ter perdido a capacidade de se indignar. Quando a morte se torna rotina, o horror se torna normal, e nada pode ser mais perigoso que isso.
Bergman encerra seu filme com uma dança da morte: o cavaleiro, sua esposa, o escudeiro e outros personagens são levados pela Morte em uma procissão ao horizonte. No Rio, essa dança parece nunca acabar. São corpos que tombam todos os dias, vidas que se perdem antes de florescer, esperanças que se esvaem entre sirenes e tiros.
Talvez o que reste, como no cinema de Bergman, seja a necessidade de olhar a morte de frente, não para aceitá-la, mas para finalmente questionar o que nos trouxe até aqui. Até quando o Brasil permitirá que agentes do próprio Estado, em vez de proteger, ajam como instrumentos da morte? Quantas vidas ainda serão entregues antes que se restabeleça o valor absoluto da vida humana, sem distinções de território, cor ou condição social?
No xadrez da vida e da morte, como no filme de Bergman, a partida segue inevitável. Mas no tabuleiro do Rio de Janeiro, quem tem caído não são os reis nem as rainhas, são os piões, sacrificados em nome de um jogo que não escolheram jogar.
Enquanto essa reflexão não for feita com coragem e responsabilidade, o Rio continuará sendo palco da mesma partida, movendo as mesmas peças, sob o olhar silencioso da Morte.
