Somos nossa essência, independente da aparência que temos – Por Paula Hammel

A madrugada sussurrava pelos subterrâneos da cidade. No interior do esgoto, onde a umidade se misturava aos murmúrios abafados do mundo acima, duas pequenas figuras caminhavam lentamente, carregadas de pensamentos inquietos. Zilix e Tarji, baratas e comadres de longa data, encontraram uma pequena fenda onde costumavam se reunir. Era ali que compartilhavam reflexões sobre a vida – um espaço de confidências, moldado pelo tempo e pela necessidade de desabafar.

– Você já percebeu, Zilix – começou Tarji, sua voz trêmula, como se carregasse um peso ancestral –, como somos sempre tratadas com repulsa? Não importa o quanto tentemos ser discretas, sempre somos vistas como algo nojento, indigno de existir.

Zilix suspirou profundamente, suas antenas arqueadas, como se carregassem anos de resignação.

– Somos as sombras que eles evitam, Tarji. Nosso corpo, nossa forma, tudo em nós provoca aversão. Mas… será que precisamos aceitar isso? E se pudéssemos ser diferentes?

Tarji ficou em silêncio, refletindo. A ideia de transformação parecia, ao mesmo tempo, impossível e fascinante.

– E se não fôssemos mais… baratas? – sugeriu, sua voz iluminada por uma esperança tímida.

A faísca daquele pensamento levou as duas ao Centro de Harmonização Barato, um lugar cuja fama corria pelos becos e fendas da cidade. Na entrada, uma placa reluzia com as palavras: “Mudamos sua aparência, respeitando sua essência.” O cheiro do ambiente era doce e artificial, encobrindo o odor ácido dos produtos químicos e das transformações em andamento.

Foram recebidas pelo famoso Dr. Barateiro, um besouro de carapaça polida como metal e antenas perfeitamente alinhadas. Ele era uma figura respeitada, conhecido por transformar até os insetos mais desprezados em algo quase admirável.

– Minhas caras, o que as traz aqui? – perguntou o doutor, inclinando-se com um gesto que mesclava elegância e profissionalismo.

Zilix tomou a frente, sua voz carregada de uma solenidade quase trágica:

– Queremos mudar, doutor. Não queremos mais ser vistas como aquilo que causa nojo. Algo mais refinado, mais… aceito. Talvez algo próximo de um besouro, com sua carapaça reluzente e digna.

O doutor meneou as antenas, pensativo.

– Um pedido desafiador, mas não impossível. Posso ajustar as antenas, polir a carapaça, suavizar as linhas… Contudo, devo avisá-las: a essência é algo que não se altera tão facilmente.

Ainda assim, Zilix e Tarji submeteram-se ao processo. Durante horas, a carapaça foi lixada, as antenas encurtadas e alinhadas, e uma camada de tinta metálica transformou seus corpos. Quando finalmente se olharam em uma poça de água parada, mal se reconheceram.

– Olhe só para nós, Tarji! Estamos completamente diferentes. Quase… elegantes.

Tarji inclinou a cabeça, observando o reflexo por mais tempo do que Zilix.

– Sim, estamos diferentes… mas, Zilix, ainda sinto que sou a mesma.

A sensação persistiu, e no dia seguinte voltaram ao centro para questionar o Dr. Barateiro.

– Doutor, seu trabalho foi impecável – começou Tarji –, mas… continuamos sendo baratas, não é?

O doutor ajustou suas próprias antenas antes de responder, com uma sinceridade quase cruel:

– Minhas queridas, posso alterar o exterior, mas não sou Deus. Vocês são, e sempre serão, o que nasceram para ser: baratas.

As palavras do doutor pesaram nos pensamentos das duas. De volta ao lar, diante do espelho, refletiram sobre o tempo, o dinheiro gasto e a sensação de vazio que as acompanhava.

– Tarji, tentamos fugir de quem somos, mas para quê? Gastamos tudo o que tínhamos e, no fundo, continuamos nos sentindo… iguais.

– É verdade, Zilix. Mudamos a casca, mas não o que está dentro.

Mais tarde, Tarji resolveu explorar uma nova cozinha, ainda confusa sobre a identidade que sua nova aparência deveria trazer. Lá encontrou uma mulher que, ao vê-la, arregalou os olhos.

– Mas que bicho estranho! Parece uma barata… mutante. Será perigoso?

A mulher, tomada pelo medo, pegou uma vassoura e avançou na direção de Tarji. Em pânico, a barata fugiu e se escondeu no primeiro cano que encontrou.

Dentro do silêncio frio e úmido do encanamento, Tarji refletiu. “Por que tento ser outra coisa? Se nasci assim, talvez seja porque o mundo precisa de baratas, ainda que ninguém as queira. Não importa a aparência; minha essência continua intacta, e talvez seja nela que resida minha verdade.”

Quando reencontrou Zilix, Tarji parecia mais calma.

– Sabe, Zilix, gastar tempo tentando negar o que somos foi um erro. Somos baratas, e disso não devemos nos envergonhar.

Zilix acenou com as antenas, um sorriso discreto surgindo em sua face reluzente.

– Talvez o segredo esteja nisso, Tarji. Não importa o que os outros vejam; importa que aceitemos a nós mesmas.

E assim, decidiram viver sem artifícios, abraçando sua essência. Afinal, a aparência é apenas reflexo da superfície; é na profundidade do ser que habita a verdadeira identidade.

Paula Hammel

Share this content:

Editor Ourinhos Online