Um dia teremos um governo bom para todos? – Por Maurício Saliba

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Não, porque governar é escolher quem perde.

“Quando teremos um presidente bom para todos?” É uma pergunta que escuto com frequência e que, não raro, revela um certo grau de ingenuidade política. Minha resposta é sempre direta: nunca. E não se trata de pessimismo, mas de realismo. A política não é o lugar da conciliação universal, mas o campo de disputa entre interesses concretos, contraditórios e, por vezes, inconciliáveis. Governar não é agradar a todos; é fazer escolhas, e toda escolha implica necessariamente em perdas e resistências. Governar é escolher quem ganha mas, sobretudo, quem perde.
A ideia de um governo que seja “bom para todos” supõe uma harmonia que simplesmente não existe na estrutura social. Os interesses entre classes sociais, grupos econômicos, setores ideológicos e identidades coletivas estão em tensão permanente. Esperar neutralidade de um governo é desconhecer que vivemos em uma sociedade atravessada por desigualdades profundas, de renda, de acesso, de voz, de poder. Não há como tomar decisões políticas relevantes sem afetar diretamente esses desequilíbrios.
Acreditar que é possível agradar patrões e trabalhadores ao mesmo tempo, ou que é viável adotar medidas que favoreçam igualmente ricos e pobres, é ignorar que seus interesses são, na maioria dos pontos, antagônicos. Essa conciliação imaginária, muito explorada em campanhas eleitorais, desaparece no primeiro embate real da administração pública: a definição de prioridades. E a definição de prioridades é, por essência, um ato de escolha entre grupos com demandas distintas. Quem tem prioridade, ganha. Quem não tem, perde.
Tomemos alguns exemplos concretos. As leis trabalhistas, por exemplo, são sistematicamente atacadas por parte do empresariado porque representam uma limitação ao seu poder de mando. Para o trabalhador, são uma proteção mínima diante da vulnerabilidade que enfrenta no mercado de trabalho. Pergunte a qualquer empregado que já ousou dizer “não” ao chefe se não se sentiu ameaçado. Já para muitos empresários, essas leis são vistas como “entraves” à produtividade, ou seja, à sua margem de lucro. Qualquer tentativa de fortalecer a legislação trabalhista inevitavelmente gera atrito com o setor patronal.
Outro exemplo é o aumento real do salário mínimo. Trata-se de uma política fundamental para reduzir desigualdades e estimular a economia por meio do consumo popular. Mas ela encarece a folha de pagamento das empresas e reduz, em muitos casos, sua competitividade ou seus lucros. Portanto, qualquer decisão nesse campo beneficia uns e desagrada outros. Não há como “equilibrar” esse jogo sem tomar partido de um lado.
Cotas raciais nas universidades também revelam esse impasse estrutural. De um lado, beneficiam grupos historicamente excluídos do ensino superior. De outro, provocam incômodo em setores que naturalizaram o privilégio e não aceitam ter de competir em condições mais igualitárias. Aqui, novamente, a política precisa decidir: ou corrige desigualdades históricas, ou mantém o “status quo”, e cada decisão vai gerar apoio de um grupo e resistência de outro.
No caso dos impostos, a situação se torna ainda mais reveladora. A carga tributária no Brasil recai, de forma desproporcional, sobre os mais pobres. Qualquer proposta de justiça fiscal, como a taxação de grandes fortunas ou a elevação de tributos sobre dividendos, encontra forte resistência das elites econômicas. Mesmo que essas medidas sejam fundamentais para financiar políticas públicas inclusivas, a reação é feroz. E o mais preocupante: parte da população de baixa renda, seduzida por discursos ideológicos, muitas vezes defende essas elites em nome de um suposto “direito de empreender”, sem perceber que está lutando contra seus próprios interesses. Nesse jogo, “gastar menos” quase sempre significa cortar investimentos em saúde, educação e assistência social.
O mesmo vale para cortes em programas sociais, privatizações de serviços públicos ou flexibilizações ambientais.
Durante a pandemia de COVID-19, a tensão entre saúde pública e economia se escancarou. O lockdown, necessário para salvar vidas, afetou duramente os trabalhadores informais e pequenos comerciantes, muitos dos quais ficaram sem renda e apoio adequado. Enquanto isso, setores empresariais pressionavam pelo retorno às atividades, mesmo com risco sanitário. Governar, naquele contexto, era decidir entre diferentes formas de sofrimento, e ninguém saiu ileso.
Esses exemplos mostram que a política não é o reino da harmonia, mas da escolha. E que toda escolha tem custos. Não existe governo sem conflito, e a qualidade de um governo não deve ser medida por sua capacidade de “agradar a todos”, mas por sua disposição em nomear os conflitos, assumir suas opções e justificar publicamente por que escolheu um lado. Em nome de que princípio, de que bem comum, de que projeto de sociedade?
Ou seja, não existe orçamento mágico ou infinito para atender a todos os setores da sociedade simultaneamente. O Estado brasileiro convive com limitações fiscais severas, e escolher onde cortar despesas é, invariavelmente, escolher quem será penalizado. Infelizmente, essa escolha quase sempre recai sobre os mais pobres e vulneráveis, porque cortar “gastos” significa, na prática, reduzir investimentos em saúde, educação, assistência social e programas essenciais para a população de baixa renda.
Assim, a retórica do “ajuste fiscal” e da “responsabilidade” muitas vezes mascara uma realidade cruel: a austeridade no Brasil traduz-se em sofrimento ampliado para quem menos tem. Esse é o cerne do conflito político que atravessa nossa sociedade e que governos honestos deveriam enfrentar de frente: a impossibilidade de agradar a todos e a necessidade de assumir que decidir é priorizar, e que priorizar é decidir quem perde para que outros ganhem.

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Editor Ourinhos Online