Dia da Mulher ou Dia da Hipocrisia? O Verdadeiro Desafio da Igualdade – Por Maurício Saliba
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No mês de março comemora-se o dia internacional da mulher. A rigor, deveria promover mais reflexão do que celebração, já que, vivemos numa sociedade machista, preconceituosa em que sobrevivem diferenças salariais determinadas pelo sexo, com instituições, organizações e associações nas quais as mulheres continuam com sua participação vedada e sem possibilidades de assumir funções superiores.
A pergunta é: por quê? Por que a mulher ocupa lugar subalterno na sociedade? A resposta estaria na suposta “inferioridade” feminina? Ou talvez na sua obrigação “natural” da maternidade?
Acompanhando as celebrações, vimos a mulher representada como figura complementar ao homem. Exaltou-se sua importância, suas diferenças, seu papel na história, suas qualidades e protestou-se por uma maior participação social. Mostrou-se, como exemplo de progresso da mulher, empresárias bem sucedidas, sentadas em seus escritórios destilando ordens e comandos. A grande mídia, de modo superficial e simplista, incitou o embate contra os homens, como se fosse à ambição individual desses a responsável pela sua opressão. Todavia, nenhuma reflexão foi feita sobre seus motivos ocultos.
A reflexão deve se iniciar com duas constatações fundamentais. A primeira: não são em todas as sociedades que mulher é oprimida e marginalizada. A segunda: não foi sempre assim, uma vez que a mulher já esteve em posição superior socialmente. A situação que vemos hoje vigora, há tanto tempo, que a naturalizamos. Mas, para compreendê-la devemos buscar sua gênese histórica.
Fundamentalmente, necessitamos compreender que, tanto os homens como as mulheres possuem, na sua essência, os valores que hoje distinguimos entre “feminino” e “masculino”. O comportamento forjado durante nossa evolução é determinado, ao mesmo tempo, por essa dicotomia, independentemente de nosso sexo. Os masculinos são força, disputa, competitividade, objetividade, racionalidade, egoísmo e autonomia. Já os femininos são sensibilidade, cuidado, emoção, cooperação, solidariedade, intuição, espontaneidade e sensibilidade. Frisemos, mais uma vez, que essa divisão faz parte do nosso ser, o que independe do gênero.
Na história da humanidade o papel dos homens e mulheres variou bastante. Mas na maior parte dela o status da mulher foi sempre superior ao homem. Nos primórdios da existência humana eram as mulheres, e os princípios femininos, que governavam o mundo, pois elas tinham o poder de gerar vida e isso as aproximava da divindade. Além disso, a garantia da sobrevivência de um grupo nômade, nas agruras da luta pela vida, dependia da contínua chegada de novos membros e da colaboração entre eles. Eram sociedades igualitárias, de moral coletiva, prevalecendo a cooperação, a liderança pela sedução e o poder do diálogo como persuasão. Nesse período, os símbolos divinos são sempre femininos. As deusas (“grande mãe”) criaram o mundo e tudo que nele existe. Elas eram sempre concebidas como tolerantes, amorosas e indulgentes.
Um pouco mais tarde, quando a força física ganha espaço, ocorre à ascensão do homem, com sua importância se igualando à da mulher. Surgem sociedades nas quais o poder de ambos estão no mesmo plano. Os deuses são, ao mesmo tempo, masculinos e femininos, cujo exemplo é o hinduismo, do yin e yang.
Logo, vivemos governados pelos atributos femininos enquanto estivemos em sociedades sem transmissão de herança, pois não existia a propriedade privada e nem mesmo a guerra, havendo espaço para todos e para a cooperação. A partir do aparecimento da propriedade e do Estado, a sociedade se transforma e com ela os princípios que governam o mundo. Surge, nesse período, a propriedade privada e com ela a sociedade de classes. Um grupo de homens concentrará a riqueza em suas mãos excluindo a grande maioria da possibilidade de possuí-la. Os fortes dominam os fracos, impondo-lhes a disciplina do trabalho contínuo e a riqueza se concentra, cada vez mais, nas mãos de poucos privilegiados. O gênero masculino ser torna hegemônico (como até hoje). Com relação à mulher, inicia-se seu declínio e sua submissão que está relacionado com a necessidade masculina de buscar a descendência legítima. A virgindade é a expressão e manifestação da decadência de sua condição, transformando-se em extensão de sua propriedade. Os símbolos divinos deixam de ser femininos e se transformam em masculino. Deus agora é homem, cria o mundo sozinho e governa de forma autoritária. Os princípios que agora imperam no mundo serão os masculinos. Podemos confirmar essa transformação em várias passagens dos textos bíblicos, tais como no Eclesiastes 7, 26: “Então descobri que a mulher é mais amarga do que a morte, porque ela é uma armadilha, o seu coração é uma rede e os seus braços são cadeias. Quem agrada a Deus consegue dela escapar, mas o pecador se deixa prender por ela” ou Eclesiástico 25, 24: “Foi pela mulher que começou o pecado, e é por culpa dela que todos morremos”.
A competição, a força e o egoísmo vigoram, substituindo a cooperação e a solidariedade. Os valores femininos passam a ser considerados menores e conseqüentemente próprios de pessoas inferiores. Como menores devem ficar restritos ao âmbito doméstico. É preciso um poder forte e centralizado, estabelecendo disciplina férrea e autoridade para que servos e escravos trabalhem sob condições deletérias.
Os detentores do poder logo percebem a eficiência desses valores na produção da riqueza, na manutenção de seu domínio e na conquista da supremacia. Os atributos masculinos se transferem para o espaço público, da política, da religião e do trabalho.
De matriarcal passamos para o período patriarcal, já que para a sociedade de classes, dividida entre opressores e oprimidos, os valores femininos seriam desestabilizadores, e exporia ao prejuízo a produção, a eficiência e o próprio poder. Por isso, a partir desse momento, o menino é treinado, desde a mais tenra idade, para ser “homem de verdade”, ou seja, forte, com sentimentos controlados, austero, disciplinador e artificial. Os valores femininos são atribuídos apenas à mulher, pela sua fragilidade.
Voltemos aos dias de hoje. Se olharmos à nossa volta, perceberemos que vivemos em uma sociedade com valores patriarcais. Talvez o mundo moderno seja mais complexo e civilizado, e a mulher tenha mais liberdade e possibilidades, mas seguimos dirigidos pelos mesmos princípios, porquanto os atributos femininos continuam desestabilizadores e ameaçadores. O capitalismo conseguiu a proeza de aguçar a competição e ampliar os conflitos. Nas empresas modernas, mais do que nunca “os fins justificam os meios”, na sanguinária conquista do lucro. O universo empresarial é uma guerra, que como todas faz “vítimas” e provoca “sacrifícios”. Não há lugar para fracos e pusilânimes, porquanto nas relações econômicas é fundamental a racionalidade (no sentido weberiano), a objetividade e a eficácia. Nas trincheiras, ou seja, nas organizações, jamais se pode perdoar ou fazer concessões, sob pena de perda da disciplina e do comando. Não há espaços para o altruísmo, cooperação, a solidariedade e a espontaneidade.
No mundo dos negócios os valores femininos não encontram colocação, uma vez que não seriam eficientes e colocariam em risco os negócios. As mulheres que assumem postos de comando nas empresas agem como homens, ou seja, pelos princípios masculinos. Para participar desse mundo a mulher deve deixar de sê-la. Há uma contradição entre os valores femininos e a sociedade de classes. Sob o domínio desses valores, jamais se produziriam armas ou existiram guerras, uma vez que mães nunca matariam filhos de outras. Da mesma maneira, o capitalismo não funcionaria, já que não se demitiria das fábricas um pai de família em razão da planilha de custos determinando a necessidade de maximização dos lucros.
Enfim, não temos o que comemorar no dia internacional da mulher porque os valores que lhe atribuímos jamais serão aceitos em nossa sociedade. De nada adianta a mulher chegar ao poder, se o fizer sob os princípios masculinos, como nos casos de Margaret Tatcher, conhecida como a “dama de ferro” pela sua força e determinação em deletar os direitos trabalhistas ingleses; ou como Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita francês Reunião Nacional, que promete, caso eleita, expulsão e perseguição de imigrantes, rejeitando a adoção por casais homoafetivos etc. Outras, sufocam sua feminilidade acreditando que “ser mulher” é cultuar amores piegas e romantismos de telenovela.
O que precisamos para o século XXI não é da mulher no poder, mas do ressurgimento dos princípios femininos como valores hegemônicos de nossa sociedade. Esses valores não são exclusivos das mulheres, no entanto, por fatores históricos são as principais portadoras. Só há salvação para o planeta e, consequentemente, para a humanidade se reconquistarmos a capacidade de cuidar, de dividir, e de cooperar. Para isso, enfrentar-se-iam forças terríveis, já que são valores completamente opostos ao sistema capitalista e que, eventualmente, causariam a sua extinção.
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