QUEM CUIDA DE QUEM CUIDA? – Por Luiz Eduardo Lima
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Livro aborda relação de pacientes com distúrbios demenciais e a saúde de seus cuidadores
De acordo com o Relatório Perspectivas da População Mundial 2024, da Organização das Nações Unidas (ONU), o número de idosos deve crescer ainda mais. As projeções apontam que em meados da década de 2030, haverá 265 milhões de indivíduos com 80 anos ou mais, superando o número de crianças. E até o final da década de 2070, a população global com 65 anos ou mais deverá atingir 2,2 bilhões, ultrapassando o número de crianças menores de 18 anos. Assim, o envelhecimento populacional não só é uma realidade, como também uma realidade próxima.
Ainda que a Ciência tenha apresentado avanços que garantam uma melhor qualidade de vida na velhice, a população idosa demanda maiores cuidados e é um grupo com maior vulnerabilidade física, mental e social. Logo, a dependência de outros indivíduos para auxiliá-los em demandas complexas (e mesmo em demandas cotidianas) se materializa em nossos tempos. Isso é agravado quando, em muitos casos, o declínio cognitivo se intensifica, motivado por distúrbios demenciais, como o Alzheimer. Dessa forma, surge, no seio de muitas famílias, a figura do(a) cuidador(a).
É neste contexto que a psicóloga Dasha Kiper discute a relação da demência, dos cuidadores e dos mecanismos da mente em seu livro “Viagens a terras inimagináveis”, publicado aqui no Brasil pela Editora Todavia, com tradução de Maria Cecilia Brandi. Para Dasha, que também é diretora de consultoria clínica de grupos de cuidadores, é preciso avaliar o alto custo físico e psicológico para a saúde dos cuidadores como resultado dos serviços que oferecem.
Por meio da sua experiência pessoal como cuidadora e como psicóloga que trabalhou com acompanhamento de grupos de cuidadores, Dasha traz em seu livro um compilado de histórias que a tocaram profundamente ao longo dos anos. As relações de pais e filhos, cônjuges, amigos, avós e netos ou mesmo de cuidadores externos à família são contadas com muita sensibilidade e humanidade.
A autora também se vale da Filosofia e da Literatura para contextualizar e criar reflexões a respeito dos mecanismos da mente e da relação cuidador-paciente. Textos e personagens de Borges, Kafka, Tchékhov e Melville engrandecem a narrativa da obra, tornando a leitura ainda mais instigante e permeada de momentos reflexivos. Ademais, as histórias dos indivíduos retratados no livro nos emocionam, mas também nos agraciam com momentos divertidos, como a história de uma paciente que jantava todo dia com um retrato de Stefan Zweig.
Apesar disto, o livro não deixa de ser realista ao apresentar os problemas de saúde mental dos cuidadores, que mesmo após a partida do paciente, se encontram presos à já finda realidade da pessoa com demência. Dasha também pondera sobre os sentimentos conflituosos das pessoas que cuidam: quando perdem a paciência e vem o arrependimento, o esgotamento pelo excesso de movimentos e conversas repetidas, o deteriorar de uma mente brilhante, o amor que, às vezes, precisa ficar em segundo plano em prol dos melhores cuidados da pessoa amada. A relação entre paciente e cuidador na maioria das vezes é também uma relação familiar – e isso adiciona ingredientes ainda mais complexos neste caldeirão de sentimentos.
Além disso, a autora adverte que, embora as reações de uma pessoa com distúrbio demencial nem sempre sejam carregadas de intenção, não considerar que a mente do indivíduo continua ali pode desumanizá-lo. Quanto aos cuidadores, é comum que mesmo sabendo que seu pai, sua mãe ou seu cônjuge sofrem de demência, isto não os impeça “de reagir de forma emocional e errática à má conduta ou delírios do seu paciente”. Ambas as partes envolvidas nesta relação são humanas.
Todos estes cenários apresentados no livro nos fazem refletir sobre como a demanda por cuidadores de idosos cresceu no Brasil e no mundo e que, assim como na maioria dos casos apresentados na obra, esse papel é desempenhado por familiares e/ou amigos. E geralmente, mulheres. É inevitável estabelecer um recorte de gênero aqui. São as mulheres que geralmente desempenham o papel de cuidadores de seus cônjuges, companheiros, filhos, pais e avós. De acordo com pesquisa do Instituto Lado a Lado pela Vida (LAL) junto com a Veja Saúde, de 2021, “83% dos cuidadores familiares e 91% dos profissionais são mulheres”. E não raro são mulheres que precisam abdicar de trabalho, estudos e sonhos para cuidar do paciente. E, além de tudo, é um trabalho de cuidado quase sempre invisibilizado.
Entre dados e histórias reais, o livro nos propõe uma reflexão sobre os cuidados que nós, como sociedade, devemos ter com quem também cuida. Carecemos de entender as demandas físicas e emocionais, bem como de humanizar tanto os pacientes como os cuidadores. E, acima de tudo, buscar encontrar um caminho de mais afeto e empatia com o próximo, pois afinal, o dia de amanhã também é “uma terra inimaginável”.
Luiz Eduardo de Lima Generoso
Referências do texto:
ONU. Ageing. Disponível em: https://www.un.org/en/global-issues/ageing
Instituto Lado a Lado pela Vida. Cuidadores do Brasil. Disponível em: https://ladoaladopelavida.org.br/noticia/1688753101432×592379161990922200
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