O neocolonialismo da nossa língua – Por Luiz Bosco

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Toda língua é dinâmica, sujeita a constantes mutações por acréscimos, desaparições, empréstimos, criações etc. Não há um vocabulário e uma gramática definitivas escritas em pedra, como um decálogo do idioma. É no tecido vivo do cotidiano e nos embates dos discursos registrados em distintas mídias que nós usamos e refazemos nosso linguajar.
Qualquer idioma que tomemos como exemplo se estabelece sobre essa vivacidade, na qual elementos de outros idiomas se incorporam. O português que falamos no Brasil vem dos povos ibéricos, africanos e dos povos que aqui já habitavam antes da chegada dos portugueses. Essa riqueza de raízes constitui a identidade e a beleza da nossa comunicação.
Esses são os aspectos bonitos do processo e nos restringirmos a eles é cair em um romantismo bobo, que silencia vozes de sofrimento presentes em nosso linguajar. O português foi imposto aos povos originários, eliminando, segundo estimativas, cerca de 1500 idiomas. A mesma violência ocorreu em relação aos povos que foram trazidos à força do continente africano. Se temos muito em nosso vocabulário vindo dessas raízes, se deve à resistência dessas culturas, e não à mera benemerência de colonizadores e do milagre da miscigenação, como tão romanticamente gostamos de acreditar – um elemento do nosso imaginário que, confortavelmente, desvia o nosso olhar das violências sofridas, e ainda em sofrimento, por esses povos.
Toda palavra é um campo de batalha e o idioma não é um plácido encontro de influências, mas uma arena de disputa política (oi, Volochínov). Um povo domina a outro por diversas vias, inclusive pela imposição de sua língua, apresentada como superior ao barbarismo do povo dominado. Isso acontece até hoje, em parte por meios mais sutis.
A colonização do Brasil nunca foi interrompida, tendo sido alterados apenas os colonizadores. Aquilo que vem da metrópole continua sendo imposto e propagandeado como superior ao que é produzido aqui. Está enraizada em nossa cultura uma visão de superioridade das ideias, produtos e processos de origem externa, principalmente dos EUA e da Europa.
A publicidade e a propaganda se valem disso há muito tempo. Lançar um produto com nome em inglês é lhe dar um ar de novidade, de sofisticação e de um novo conceito. Não importa se nada disso seja concreto, o importante é aparentar e vender. Assim, surge hair styler, barber shop, personal trainer, entre outras coisas que nada mais são que antigas práticas com outras roupagens.
É uma dinâmica que fixa em nosso imaginário que aquilo que vem do colonizador, ou ao menos aparenta vir, seja melhor. Isso empobrece nosso vocabulário empobrece. Parece contraditório afirmar que o uso de novas palavras empobrece nosso léxico, contudo, ao tomarmos um atalho meramente publicitário para expressarmos o que (talvez) seja uma nova ideia, um novo conceito de trabalho, perdemos a oportunidade de desenvolver a apresentação dessa ideia e ampliar nosso repertório de compreensão do mundo.
Nada disso é pouco se consideramos que a linguagem, em suas múltiplas formas, é constituinte do pensamento, tanto no seu conteúdo, quanto em suas funções. Explorar a complexidade de um conceito que se deseja apresentar é enriquecer suas nuances e, conjuntamente, enriquecer nossas formas de pensar e aprender (e aí, Vigotsky).
Empobrecer a linguagem é escamotear elementos para compreender o mundo como o experienciamos, relegando ao silêncio elementos de sua concretude e impossibilitando que o expressemos plenamente. Isso é do interesse da ideologia dominante, voltada a negar elementos do real para que este seja aquilo que ela diz ser (agora o salve vai para Leontiev).
O uso do inglês para se lançar supostos novos conceitos alcança níveis de fajutice que, tenho que admitir, considero até divertidos. Rio por saber que expressões como notebook, outdoor, home office, pendrive e shopping sequer existem em inglês ou são utilizadas de forma completamente diferente da nossa. Fico imaginando um executivo espertinho querendo lançar o produto e botando um nome que soasse legal.
Algumas situações são irritantemente preguiçosas, como no uso da palavra case ao invés de… caso. O mesmo quando se trata de uma expressão que abriga um conceito; seria mais interessante explorá-lo e, a partir daí, construirmos uma expressão nossa, enriquecendo autenticamente sua compreensão e utilização. Termos como prequel poderiam ser substituídos por prólogo ou introdução. Essas palavras talvez não expressem exatamente do que se trata, mas aí poderia entrar em jogo nossa capacidade de refletir sobre uma nova ideia e colocá-la em palavras (se ainda não abrimos mão disso).
Por outro lado, também me delicio com as apropriações antropofágicas, particularmente presentes em gírias, como resetar, bugar, tankar, entre outras. Nisso vemos um elemento fantástico de nossa cultura que é sua porosidade, não meramente subserviente ou devotada a interesses mercadológicos, mas inventiva e atribuidora de significações específicas de nossa cultura.
Aqui não estamos falando da defesa parnasiana de um uso mais puro do idioma. Diante do neocolonialismo engendrado pelos EUA, não é pouca coisa nos atentarmos para o uso que temos feito da linguagem. Palavras moldam subjetividades e subjetividades geram práticas. Toda pequena batalha importa se queremos uma identidade autônoma e não meramente servil; se queremos uma convivência de igualdade e não de exploração e violência; se queremos falar plenamente e não permitir que silenciem significações importantes para nós.

Luiz Bosco Sardinha Machado Júnior
Doutor em Psicologia pela Unesp – Assis; psicólogo e professor universitário.

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