Caxemira: Entre a Índia e o Paquistão – Origens, Ciclo Atual e Repercussões João Felipe Carvalho
Na madrugada de 22 de abril de 2025, um atentado terrorista no Vale de Baisaran, perto de Pahalgam, na Caxemira indiana deixou pelo menos 26 turistas mortos e mais de 20 feridos. Segundo testemunhas, os agressores questionaram potenciais vítimas sobre sua identidade religiosa antes de abrir fogo, visando especificamente não-muçulmanos. Este episódio, um dos mais mortais contra civis na região desde 2000, reacende uma disputa que remonta à partição de 1947 e que envolve riscos nucleares, rivalidades geopolíticas e profundas consequências econômicas. É nesse cenário de fragilidade permanente que exploraremos na primeira edição da presente coluna a complexa dinâmica do conflito entre Índia e Paquistão.
Desde a partição do subcontinente indiano, em 1947, a Caxemira permanece como uma ferida exposta na relação entre Índia e Paquistão. A indecisão sobre a delimitação desse território de maioria muçulmana, após o fim do domínio britânico, gerou duas nações irreconciliáveis no plano político e identitário: a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, concebido como Estado muçulmano. Mais de 70 anos depois, qualquer fagulha local pode reacender uma crise entre países possuidores de arsenal nuclear, tornando cada desavença mais grave do que um simples choque de fronteira.
Raízes Históricas
A escolha do Maharajá Hari Singh, em 1947, de aderir à União Indiana, foi alvo de pressões e invasões de combatentes tribais vindos do território que hoje compõe o Paquistão. O Conselho de Segurança da ONU recomendou um plebiscito para decidir o destino da Caxemira, mas ele jamais chegou a ocorrer. Desde então, foram três guerras oficiais (1947–48, 1965 e 1971), insurgências em períodos intercalados e inúmeras violações do cessar-fogo, sempre com vítimas civis e militares de ambos os lados.
Até já existiram tentativas diplomáticas, como nos governos de Pervez Musharraf (Paquistão) e Manmohan Singh(Índia), que chegaram a ensaiar propostas de autonomia à região, que a tornariam uma zona desmilitarizada e de livre circulação entre as partes, mas os esforços não obtiveram sucesso durador.
Em agosto de 2019 o governo indiano revogou unilateralmente o Artigo 370 da Constituição, que transformou o antigo estado em dois “territórios da União” sob controle direto de Nova Delhi – capital indiana, autorizando ainda cidadãos de outras partes da Índia a comprar propriedades na região. Com medo das alterações demográficas, que poderiam fragilizar a identidade muçulmana local, a população caxemira reagiu com protestos.
O endurecimento central do governo indiano elevou o nível de militarização, criando um ciclo de provocações e retaliações.Grupos terroristas como Jaish-e-Mohammed e Lashkar-e-Tayyiba intensificaram ações contra alvos indianos, enquanto Nova Délhi colocou o Paquistão na lista cinza do Grupo de Ação Financeira (FATF) por suposto financiamento ao terrorismo. Cada atentado — ao Parlamento indiano, em 2001; à Uri, em 2016 ou à Pulwama, em 2019— inicia novamente aretórica agressiva e as movimentações de tropas ao longo da Linha de Controle, além de voltar o tópico aos debates internacionais. Em 2022, o Paquistão havia sido retirado da lista, mas é possível que os acontecimentos de 2025 coloquem o Estado novamente na posição de financiador do terrorismo.
Os leitores já percebem que se trata de um conflito que não pode ser chamado de recente, nem se vai alcançar a paz plena na região com qualquer acordo de cessar-fogo. Apenas um acordo permanente de divisão territorial entre todos os países vizinhos ao território da Caxemira, embasado na autodeterminação dos povos que ali vivem, pode dar fim ao conflito. Em seguida, vamos analisar as repercuções políticas desse ciclo mais recente do conflito, que durou da segunda metade de abril de 2025 à primeira metade de maio do mesmo ano.
O ciclo recente: Índia x Paquistão
Em 22 de abril, um ataque contra turistas na Caxemira indiana desencadeou uma escalada nas fronteiras da Caxemira, região de intersecção entre os territórios da Índia e do Paquistão, que levou a bombardeios aéreos e contra-ataques de ambos os lados. Na noite de sábado, 10 de maio, entrou em vigor um novo cessar-fogo, anunciado primeiro pelo presidente americano em rede social e depois confirmado pelos chanceleres indiano e paquistanês.
Nesse momento é importante lembrar que a ação a ser tomada na política internacional não é a mais benevolente, que vai defender os interesses da humanidade, mas sim a mais estratégica, defendendo os interesses do Estado que a realiza. A intermediação dos Estados Unidos é uma tendência bastante observada na política externa do país, já que tem como objetivo a expansão das fronteiras da sua enorme influência no cenário internacional.
Essa tendência é especialmente característica da atual administração de Donald Trump, que personifica a figura do Estado americano quando, por exemplo, publica a noticia do cessar fogo pessoalmente, ao invés de aguardar outros veículos oficiais, ou até mesmo os próprios representantes dos países envolvidos no conflito. Trump protagonizou outros momentos egocêntricos similares com relação aos conflitos em Gaza e na Ucrânia. Essa personalização da figura diplomática dos Estados Unidos também ressoa outras intenções políticas domésticas do atual presidente, mas isso seria tópico para uma outra análise.
Além dos EUA, a China também tem interesses diretos na Caxemira, controlando boa parte do território disputado e olha com grandes reservas quaisquer acordos que não incluam seus próprios objetivos geopolíticos, especialmente com o objetivo de frear a expansão da influência estadunidense no sul asiático.
Por que eu deveria acompanhar esse conflito?
Primeiramente, esse é mais um exemplo claro de desumanização das vidas perdidas em conflitos duradouros, tendência repetida especialmente quando os conflitos saem da esfera Estados Unidos – Europa, por motivos de interesse de expansão territorial e de poder. As vidas ceifadas são tratadas quase como justificativas para retomar as expansões, utilizando as forças que inicialmente serviriam para a proteção da população para agora retaliar os ataques e continuar o ciclo.Continuar acompanhando o conflito é uma forma de garantir que sempre hajam milhões de pessoas do mundo todo ‘de olho’ nos crimes cometidos contra a humanidade.
Além disso, desde a década de 1990, Índia e Paquistão não são signatários do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), e desenvolveram arsenais capazes de destruição mútua garantida. A dissuasão nuclear, embora tenha evitado guerras em grande escala, eleva o risco de escalada rápida em crises que ressurgem constantemente, já que os comandos locais podem perder o controle da situação. Apesar de improvável, somente a possibilidade de uma escalada nuclear já faz com que a população do mundo todo deva prestar atenção nesse e em outros conflitos, para que os órgãos de representação sejam devidamente cobrados, em qualquer esfera.
Por fim, o conflito leva ao encerramento de rotas comerciais e aéreas, afetando o dinamismo das economias de serviços, especialmente da tecnologia da informação, setor necessário para o comércio global e que a Índia lidera em diversos aspectos. Isso sem mencionar os reflexos financeiros imediatos, como a volatilização das bolsas, retração de investimentos estrangeiros e atrasos em cadeias produtivas — inclusive no Brasil, que exporta bens primários e manufaturados para a região.
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