Materialismo histórico no samba

“Hoje eu vim, minha nega”. A música e o futebol, mais que qualquer outra forma de expressão, sempre foram símbolos do talento criativo espontâneo do Brasil no exterior. Exatamente as duas áreas em que há possibilidade de ascensão social e econômica dos mais pobres, os desassistidos pelo Estado e a sociedade, os pretos e mulatos em sua imensa maioria. As pessoas que têm a cor da pele associada á pobreza.
Rico é rico para valer no Brasil. O antropólogo Darcy Ribeiro definiu bem a terra da injustiça social e da concentração de renda: “os ricos de nosso País desfrutam muito mais de sua riqueza que os ricos dos países ricos. Para os ricos de nosso País, este projeto sempre foi muito bom, muito gratificante. Para o povo, não”. Ele se referia a 1% da população que abocanha quase 30% da renda nacional.

O admirável mundo novo é um paradoxo na terra de contrastes. Confundem o tal mito com um simples palmito – branco, grande e fino, o apelido que o presidente Bolsonaro tinha no Exército que o expulsou como “mau soldado”; a preocupação social é comunismo; e a consciência individual é ciência oficial. Tempos de obscurantismo e negacionismo. Voltamos á ciranda cirandinha. A terra miscigenada, poli cultural e multiétnica, vive em transe hipnótico.

A música e o futebol – agora substituído por outros esportes, como o skate, como assistimos nestas Olimpíadas em que brilham nossas minas de ouro – realizam o sonho de muita gente. São os espaços mais ou menos democráticos em que pretos, brancos e mulatos competem em condições de igualdade. Marx: “um negro é um negro. Em certas circunstâncias ele torna-se um escravo. Apenas sob certas circunstâncias torna-se capital. Fora destas circunstâncias não é mais capital que o ouro intrinsicamente dinheiro ou o açúcar o preço do açúcar. O capital é uma relação social de produção”. Nestes tempos trevosos, o pior da miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Mas não se atravessa o rio duas vezes. No outro lado, as águas já são outras. O rio não retorna á sua nascente.

A arte em geral favorece o surgimento de ídolos nos vários Brasis de castas sociais. No futebol, Friedreich, Leônidas da Silva, Zizinho, Garrincha, Didi, Dorval, Mengalvio, Coutinho, Pelé – os quatro últimos a maior linha atacante do futebol mundial em todos os tempos -, Djalma Santos, Dener, Romário, foram frutos da pobreza e alguns voltaram a ela após anos de glória. Na música, Pixinguinha, Cartola, Ataulfo Alves, Carlos Cachaça, Nelson Sargento, Wilson Simonal, Djavan, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Martinho da Vila, Agostinho dos Santos, Jorge Aragão, Nelson Cavaquinho, Almir Guineto são algumas estrelas do Olimpo universal. O Brasil caboclo deve muito – “dívidas não pagas” – para os povos que nos trouxeram esta linguagem, a Máe África, em matéria de religião, gastronomia, arte e cultura e alegria.
Na linhagem do samba, Zé Kéti, Nei Lopes e Elton Medeiros consagram-se como referências intelectuais, ao lado de Paulo César Batista de Faria (Paulinho da Viola).

Este multi-instrumentista, ex-banqueiro, nascido em Botafogo, não possui apenas um repertório: possui um hinário. “Foi um rio que passou em minha vida”, “Pecado capital” e “Sinal fechado”, entre outras, são obras-primas da música popular brasileira. Impressionista e barroco, dono de voz suave e gentil – a falta que nos faz a delicadeza nestes tempos de radicalismos e ódios – Paulinho, o da Viola, é autor do maior samba baseado no materialismo histórico de Marx. “Coisas do mundo, minha nega”. A letra: “Hoje eu vim, minha nega/Como venho quando posso/Na boca as mesmas palavras/No peito o mesmo remorso/Nas mãos a mesma viola/onde eu gravei o teu nome”.

Como maior representante do samba e do choro, Paulinho e a cúpula carioca – Elton e Nei, principalmente, são cultos e politizados, ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) que sempre esteve á frente dos movimentos da cultura popular, em escolas de samba, nos terreiros de umbanda e nos morros e favelas. “Venho do samba há tempo, nega/Venho parando por aí/primeiro achei Zé Fuleiro que me falou de doença/que a sorte nunca lhe chega/que está sem amor e sem dinheiro/perguntou se eu não dispunha de algum que pudesse dar/puxei então da viola/cantei um samba pra ele/Foi um samba sincopado/que zomba de seu azar/Hoje eu vim, minha nega/andar contigo no espaço/tentar fazer em seus braços/um samba puro de amor/sem melodia ou palavra/pra não perder o valor/depois encontrei seu Bento, nega/que bebeu a noite inteira/estirou-se na calçada/sem ter vontade qualquer/esqueceu o compromisso que assumiu com a mulher/não chegar de madrugada/e não beber mais cachaça/ela fez até promessa/pagou e se arrependeu/cantei um samba pra ele/que sorriu e adormeceu/Hoje eu vim, minha nega/querendo aquele sorriso/que tu entregas pro céu/quando eu te aperto em meus braços”.

Culto, mecânico e marceneiro nas horas vagas, Paulinho da Viola canta desencontros e esperanças, buscando sempre a unidade entre os contrários. “Guarda bem minha viola/meu amor e meu cansaço/por fim achei um corpo, nega/iluminado ao redor/disseram que foi bobagem/um queria ser melhor/não foi amor nem dinheiro/A causa da discussão/Foi apenas um pandeiro/que depois ficou no chão/não tirei minha viola/parei, olhei e fui-me embora/ninguém compreenderia um samba naquela hora/Hoje eu vim, minha nega/sem saber nada da vida/querendo apenas aprender contigo/a forma de se viver/as coisas estão no mundo/só que eu preciso aprender”.
Arte e cultura como moeda forte.

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Juliana Neves

Escrevo com a intenção de mudar o mundo ofertando a verdade para a sociedade. Mas a luta é diária e constante, realmente, vivendo e aprendendo e tendo o jornalismo como meu aliado.