Se o amanhã não existisse – Por Paula Hammel

E se o tempo, esse ilusionista das promessas, recolhesse seus ponteiros à sombra da noite e silenciasse a eternidade que prometemos a nós mesmos? Se o dia seguinte, esse véu tênue onde projetamos desejos e adiamentos, deixasse de se insinuar como horizonte? Que forma tomaria o agora, despido de continuidade, mas pleno em sua urgência desnuda?

Talvez arremessássemos os talheres, libertando às mãos o gesto primitivo de tocar o mundo. Quem sabe o corpo inteiro se dissolvesse em dança, quebrando o pacto da contenção, enquanto a pele se faria palavra e silêncio ao mesmo tempo. Talvez pronunciássemos, com a voz firme do desespero e da esperança, aquilo que por tanto tempo fermentou, soterrado entre os dentes, e acolhêssemos, com ternura de orvalho, o que dessa colheita viesse a nascer ou fenecer.

Porém, o íntimo, isolado, não suporta o peso dessa interrogação. É necessário direcionar o olhar ao outro. O que faria a espécie, essa multidão de ausências que ainda se reconhece como laço? Reconheceria o fim como epifania ou continuaria a erguer cercas, como se o colapso fosse domínio a ser domado?

Com o porvir interditado, os relógios se tornariam ornamentos inúteis, as metas, vultos desvanecidos. Os calendários interromperiam seu desfile infindo de datas inventadas. Restaria o instante, nu e feroz, inadiável. E então, talvez, pudesse emergir algo essencial, não por bravura nem fé, mas por uma clareza cristalina e irrevogável.

Sem a expectativa de retorno, plantaríamos árvores cujas raízes jamais alcançaríamos a ver crescer. Tocaríamos dores que não nos pertencem, sem a angústia da recompensa. Partilharíamos o que nos atravessa, mesmo que não houvesse ouvidos para ouvir.

E nós? O que faríamos por dentro?

Não se trata de perseguir prazeres efêmeros, que escoam como água entre os dedos. Trata-se de habitar o corpo como quem retorna ao próprio nome, de escutar o pulsar oculto sob silêncios ancestrais, de beber da infância repousada e calma que habita a nuca, antes que ela se dissolva na pressa dos dias que não virão.

Sem a ilusão do depois, talvez víssemos, com uma sobriedade dolorosa, que o futuro jamais existiu. Sempre fomos esse intervalo: chama tênue entre véus, sopro frágil entre margens, fresta estreita entre o nunca e o nunca mais. O tempo não promete permanência; fomos nós que o ensinamos a fingir. Fomos nós que riscamos na areia a ideia de continuidade como se pudesse resistir à última onda.

E então, livres da espera, viveríamos o agora despido de armaduras, sem necessidade de defesa, sem vocação ansiosa pela posteridade. Não por urgência, nem por medo, mas por inteireza. Não para durar, mas para significar.

E assim, no mais breve dos instantes, no exato ponto onde a existência suspira, seríamos. Completos. Plenos. Imediatos.

Paula Hammel

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Editor Ourinhos Online