O Tempo dos Comentários – Por Paula Hammel

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Dizem não possuir tempo — que cada instante se desfaz, evapora, se dissolve como fumaça. E, mesmo assim, permanecem presos às telas. Digitam, confrontam, exaltam, dilaceram, incendeiam. Golpeiam ideias alheias, erguem convicções como muros frágeis.Uma linha basta para desencadear tempestades: afeição, rancor, louvor, repulsa. Cada símbolo martela; cada vocábulo perfura; cada gesto repercute imperceptível.

Certeza nenhuma habita. Todos acreditam portar a verdade, edificam versões incompatíveis, paralelas, simultâneas. Plataforma digital exige encenação: exibição de si, performance de convicção. Ironia escapa pelos dedos, infiltra, escorrega, desaparece. Opinião não demanda pragmatismo, requer intensidade, choque, arremesso, presença inventada.

Enquanto isso, quem clama pela escassez de horas consome-se na arena virtual. Provoca, persuade, inflama, celebra aprovação ou recolhe-se em ruína diante da contestação. Cada comentário manifesto, cada reação assinatura, cada curtida comprovação. O mundo tangível aguarda, imperceptível, sussurrante, ignorado, enquanto o espetáculo de narrativas arde, contorce-se, anuncia-se, grita.

Observo, e reparo: percepção se desdobra como cartas incandescentes. Velocidade de conexão não substitui densidade do olhar, fricção do corpo, sopro que escapa entre palavras. Gigantes em painéis diminutos, imperadores de convicções efêmeras, juízes de si mesmos, sempre à mercê da notificação seguinte, da ruptura seguinte, da erupção seguinte.

O caos multiplica-se. Cada repercussão propaga, ecoa, devolve fragmentos desconhecidos de consciência. Entre cliques, respostas, repostagens, o tempo se dissolve. Tensão coexistindo com atenção. Exposição absoluta, intransigente, devastadora.

No centro dessa explosão de veracidades simuladas, sobrevive fio tênue de percepção. Descobre-se que vida insiste em ser outra coisa: lenta, silenciosa, concreta. Pulsar fora da tela não se reduz a likes ou comentários. Existir é sentir fricção, ar, interrupção inesperada, respiração roubada, instante que resiste.

Olho ao redor. Gestos imperceptíveis, respirações não compartilhadas, encontros que não cabem em GIFs. Intensidade real não se mede. Não se encena. Não se valida. Ainda assim, permanecemos aprisionados: coletores de fragmentos alheios, navegadores compulsivos, reféns do espetáculo que concede ilusão de vivência, enquanto tudo que é vivo se agita, se desmancha, recusa registro.

Tudo multiplica-se, nada se resolve. Exaltação gera sombra; elogio transporta veneno; contestação transforma-se em tempestade. Eu permaneço, testemunha, desconstruindo pressa, examinando urgência, sentindo densidade do momento que não cabe em tela alguma. Entre opiniões inflamadas e tormentas de curtidas, percebe-se impossibilidade de traduzir experiência em palavras.

Mesmo assim continuamos. Cada gesto virtual vital, cada linha escrita prova existência. Cada reação, confronto, aplauso ou repulsa, convicção de estar presente. E, no entanto, mundo autêntico persiste, lento, concreto, irreproduzível, escapando da performance, recusando registro.

No final, então constato: enquanto o espetáculo digital consome o instante, a vida real se agita nos cantos escuros, respirando, rindo, sangrando, inteira, intangível, intensa, impossível de capturar.

Paula Hammel

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Editor Ourinhos Online