O jardim dos meus pensamentos Por Paula Hammel
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“A vida de cada um é o que seus pensamentos fazem dela.”
(Marcus Aurelius, *Meditações*, Livro 4, §3)
Naquela alvorada, o campo surgiu sem limites, aguardando a atenção de quem se incumbia de cuidar. Cada minúscula partícula emergiu como uma semente imperceptível, implorando decisão sobre destino incerto. Observei, hesitante, o que brotou e o que fenecia, enquanto o solo retinha memórias invisíveis. Um clarão ergueu-se semelhante a um carvalho vigoroso, estendeu ramos que acolheram peregrinos exaustos, sustentaram corpos fatigados na sombra generosa, suavizaram espíritos dispersos que vagavam entre raízes antigas. Outro, discreto, converteu-se em arbusto hostil, absorveu seiva, escureceu o ambiente e atingiu quem ousou aproximar-se. Aquilo que parecia insignificante impôs-se, na manhã seguinte, como panorama pleno, absoluto, exigindo atenção profunda.
Descobri que cada lembrança, cada impulso, cada concepção converteu-se em raiz, tronco, fruto ou veneno. Nenhum elemento permaneceu neutro. Tudo multiplicou-se. A superfície interior refletiu integralmente aquilo que recebia. Alimentar o temor gerou inquietação; nutrir o ressentimento produziu aspereza; regar a ternura despertou serenidade. A colheita respondeu fielmente ao zelo aplicado, mesmo quando oculto, revelando-se apenas à percepção prolongada de quem contemplava atentamente.
Invasores chegaram sem aviso. As correntes de ar transportaram partículas estranhas, a precipitação depositou grãos alheios, vozes trouxeram traços imprevistos. Inicialmente imperceptíveis, expandiram-se gradualmente, disputando claridade, absorvendo umidade e ocupando espaços. Ao perceber, o horto deixou de representar a essência, traduzindo a presença de elementos tolerados.
A reação natural consistiu em tentar conter o incontrolável. Ordenar o sopro, exigir a tempestade, dominar o céu. Ilusão. Jamais funcionou. Permanecer sob a autoridade demandou outra postura: selecionei florescimento, decidi o enraizamento, escolhi transformação. O cuidado íntimo, cuja profundidade se media apenas pelo zelo, constituiu a única soberania verdadeira.
Nem tudo mereceu abrigo. Alguns resplandeceram, porém, ocultaram toxina em interior, afetando quem aproximou-se. Outras prometeram frutos, mesmo assim, entregaram amargura. Eu, que cultivei a seara com fidelidade, devolvi aquilo que não me cabia, não por rigidez, mas por respeito à essência própria. Preservar o terreno significou proteger alma. A intervenção exigiu reconhecer excessos, podar desvios, abrir clareiras para que o resplendor alcançasse essencialidade.
O ofício demandou paciência contínua. Em certas ocasiões, arrancar raízes indesejadas revelou-se indispensável; em outros momentos, contemplar a muda emergir bastou. Cada gesto alterou panorama, cujo efeito prolongou-se além instante. O campo jamais enganou: traduziu fielmente aquilo que eu nutrira, erguido sem testemunha.
Em ocasiões singulares, contemplei horizonte, percebendo delicadeza obra: a aragem trouxe invasores, a precipitação insinuou partículas, o brilho favoreceu algumas espécies e sufocou outras, perfume das folhas novas, murmúrio galhos entrelaçados. Tudo permaneceu imprevisível; contudo, demandou decisão contínua, atenção cuidadosa, zelo constante.
Hoje, a planície oferece cores, aromas e texturas únicas. O vermelho das pétalas recém-abertas contrasta com o ocre da folhagem caída. O aroma da terra molhada mistura-se à fragrância das flores fechadas. Cada som — farfalhar folhas tenras, zumbido insetos, canto distante aves — compõe a melodia do espaço, lembrando que o campo permanece vivo, pulsante, atento a cada intervenção.
A minha existência consiste nessa planície entregue a cada amanhecer, pronta para converter-se em refúgio flores ou terreno invadido por espinhos. Não é possível impedir chegada partículas externas; contudo, cabe-me decidir o que permanecerá. A serenidade não nasce da tentativa de conter tempestades, mas da coragem de permitir que apenas aquilo que nutre, que apenas aquilo que transforma em plenitude, encontre raízes. Ao final, o mundo reconhecerá exatamente isso: a projeção que cultivei em segredo dentro do próprio domínio, cuja ordem, cujo cuidado, cujo resplendor revela a verdade sobre a minha essência.
Paula Hammel
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