O BOLSONARISMO E A MITOLOGIA GREGA – Por Maurício Saliba
A mitologia grega, aquela de Hesíodo e Homero — que alguns ainda insistem em chamar de “arcaica”, continua com muito a nos ensinar. Sua lição central? A vida é uma eterna queda de braço entre a ordem e o caos. Na mitologia, o mundo só pôde existir depois que o Caos (sim, com “C” maiúsculo, como convém a uma entidade divina) foi posto no seu devido lugar. Em seu lugar surgem deuses da ordem e da harmonia. Zeus, por exemplo, não era apenas um conquistador contumaz de mortais e imortais, mas também um zelador cósmico, sempre em guerra (com a ajuda de Ulisses, Hércules e outros) contra titãs e outras figuras que insistiam em espalhar o desequilíbrio. O caos, segundo os gregos, não pode ser eliminado totalmente, ele faz parte da dinâmica do mundo e, convenhamos, sem ele, tudo ficaria entediante demais. Assim, temos o eterno embate: de um lado, Apolo com sua lira e senso estético; do outro, Dionísio, com seu vinho e gosto duvidoso por festas destrutivas. Para Nietzsche, o caos é fundamental tanto para a criação artística quanto para a compreensão do mundo, pois é um estado de potencialidade, um terreno fértil onde a nova criação e a “vontade de potência” podem florescer. Além disso, considera o caos como um caráter inerente ao mundo, uma realidade abissal que a filosofia deve confrontar.
Olhar para a história da humanidade sob essa lente é quase terapêutico. Desde sempre, lutamos para controlar o imprevisível, nomear o inominável e botar cercas no incontrolável. Criamos religiões, políticas, ciências, uma verdadeira caixa de ferramentas civilizatórias, para tentar domar esse monstro de mil formas chamado caos. Com o advento do capitalismo, esse caos atingiu um novo nível: a privatização das terras comunais, o abandono das pessoas à selva do mercado, a gloriosa liberdade de morrer de fome em nome da produtividade. Leis contra mendigos, jornadas exaustivas e salários simbólicos garantiam que a única alternativa à exploração fosse a prisão — ou a morte. Uma era em que a barbárie parecia ter vencido a ordem dividia, como dizia Marx, “tudo o que é sólido, desmancha no ar”.
Mas o caos é persistente, como um político em época de eleição. Ele retorna, às vezes fantasiado de desemprego, às vezes vestindo a farda do fascismo, ou a gravata do nazismo, sempre com o mesmo objetivo: desmontar qualquer tentativa de organização dos de baixo. Curiosamente, o capital — essa entidade bipolar — também precisa de um mínimo de ordem para funcionar. Foi assim que, com muita luta e certo pânico do tal “espectro do comunismo”, trabalhadores conseguiram arrancar migalhas do sistema: sindicatos, direitos, leis, e uma democracia burguesa, meio torta, mas útil. Como no mito, a civilização parecia ter domado, ao menos provisoriamente, a barbárie.
No entanto, como nos alertavam os gregos, o caos nunca morre, apenas se disfarça melhor. Quando a ordem mínima imposta ao capitalismo começa a atrapalhar os lucros, volta-se à velha receita: desorganizar tudo. Direitos trabalhistas? Supérfluos. Instituições? Obstáculos. República e democracia? Relíquias ideológicas. Ciência? Comunista. A onda destruidora se espalha: ataques à ciência, à educação, ao judiciário, à cultura. As forças da barbárie aprendem marketing e convencem o trabalhador de que ele é um empreendedor em potencial — um “patrão de si mesmo”, fadado a competir até a exaustão, e fracassar com um sorriso no rosto e culpa no coração, pois penetram na subjetividade do trabalhador e os condena ao sofrimento psíquico.
E assim a desordem volta triunfante, travestida de “progresso”. Não é exclusividade do Brasil, claro, o capital em crise pelas suas próprias contradições precisa do caos como um vampiro precisa de sangue. Mas, convenhamos, por aqui temos um expoente notável: o bolsonarismo, o legítimo herdeiro da extrema direita. Como toda força genuína da desordem, não se preocupa com verdade, justiça ou qualquer noção elementar de ética. Despreza os pobres, as mulheres, os negros, os indígenas, a natureza, a arte, a ciência e até a lógica mais básica. Não se trata de simples ignorância, mas de um projeto de destruição sistemática do que ainda resta de civilização.
Sua verdadeira vocação não é construir, mas demolir: direitos, garantias, liberdades. Alimenta o caos ao destruir pontes de diálogo, ao corroer a confiança pública, ao transformar a política em espetáculo de ódio. É uma força que opera como parasita da democracia, usa suas regras para chegar ao poder, e depois trata de sabotá-las por dentro. A extrema-direita não quer restaurar a ordem: quer substituí-la por um autoritarismo instável, alimentado pelo medo, pela mentira e pela violência. E nisso, não há nada de novo, só a velha barbárie com redes sociais e slogan patriótico.
Por trás da gritaria moralista, do nacionalismo histérico e das promessas de “salvação da pátria”, a extrema-direita cumpre um papel bem definido, e nada original, na engrenagem do poder: proteger privilégios. Sua retórica anti-sistema, seu ódio às minorias e sua cruzada contra os direitos sociais têm um endereço certo. Porque, no fundo, a quem interessa a destruição de sindicatos, o ataque à universidade, o desprezo pela cultura e a criminalização dos movimentos sociais? Aos mesmos de sempre: grandes empresários, latifundiários, banqueiros e especuladores. Enfim, a agonizante lógica do capitalismo.
A extrema-direita é o braço sujo de uma elite que prefere o caos à distribuição, que escolhe a violência à igualdade. Quando ela destrói instituições, não está “reconstruindo a nação” — está pavimentando o caminho para mais exploração e concentração de riqueza. Quando sufoca a crítica, quando reprime professores, artistas e jornalistas, está apenas protegendo quem lucra com a ignorância e o medo.
A extrema-direita é útil porque distrai, divide e amedronta. Enquanto o povo briga por escola sem partido ou por quem usa qual banheiro, os de cima continuam blindados, acumulando, mandando e, claro, financiando. Não há nada de espontâneo ou popular nisso: é um projeto de poder com patrocinadores muito bem definidos. E como todo projeto assim, seu verdadeiro inimigo não é o caos, é a justiça social.
Se na mitologia Zeus deu um jeito no caos com seus relâmpagos e seu senso de hierarquia divina, hoje estamos por nossa conta. Sem deuses, resta-nos a velha e sempre difícil tarefa de nos unirmos. Mais uma vez, o velho dilema ressurge: civilização ou barbárie – a grande batalha a ser enfrentada.
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