“Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé”

No dia 15 de dezembro de 2015, no meu aniversário, meu pai chegou na minha casa (depois de caminhar somente 150 m) pálido, ofegante e com o coração disparado. Demorou muito para a respiração voltar ao normal, mais de quinze minutos. A primeira coisa que veio a minha cabeça foi coração. Aqui eu confesso a minha culpa. Apesar de ser muito analítico e observador, eu deixei passar um pequeno detalhe nos sintomas do papai. Fazia uns cinco anos que papai apresentava uma tosse persistente depois de viajar de avião. Minha culpa.

A noite fui jantar com meus pais e meus irmãos por causa do meu aniversário. Uma tradição de família. Papai estava bem. Respirava normalmente e seu coração estava com os batimentos normais.

Passamos pelo Natal e Ano Novo, mas papai sempre muito cansado.

É óbvio que nós ficamos preocupados. Precisava ser investigado.  Papai tinha passado por um cardiologista um mês antes e seus exames estavam ótimos. Então por onde começar? Meu irmão mais novo, Aulo Junior, sugeriu um pneumologista. Este irmão é especialista em fisioterapia intensiva de pulmão. Hoje trabalha na linha de frente contra a covid-19 na UTI da cidade onde mora.

Fui com meu pai a um médico pneumologista em Itapetininga. O consultório parecia uma sala de cinema, tinha exatamente 60 cadeiras e quase todas estavam lotadas. Sentamo-nos no lugar que sobrou e aguardamos. Para minha surpresa, foi muito rápido o atendimento, a consulta mais rápida ainda. Papai tinha levado a tomografia de pulmão pedida com antecedência pelo médico.

Não me lembro do tempo da consulta, mas lembro das palavras do médico, disse ele: “Senhor Aulo, o senhor tem silicose. Ou seja, o senhor tem fibrose pulmonar. Esta doença não tem cura e é laboral. Vou passar um brônquio dilatador e cortisona.”

Toda vez que eu lembro disso, eu penso que devo ter ficado idiota. Não tive reação alguma.

Contei para todos o que o diagnóstico do médico e a decisão da família foi uma segunda opinião.

O segundo médico foi em Sorocaba, era um especialista e amigo do meu irmão Aulo Junior. Eu não estava nesta consulta.

Nos reunimos a noite, na casa da minha mãe, para saber o diagnóstico. Aulo Junior estava muito nervoso, ele queria conversar conosco sem a presença de papai. Papai foi dormir as 20:00 horas, sempre muito cansado.

Estávamos todos sentados na sala de jantar e meu irmão começou a falar. “Gente, o médico colocou um bilhete no meu bolso, o bilhete diz: ligue par mim assim que chegar na sua casa, não importa a hora.” O Juninho ligou, falou durante quase uma hora. A bomba veio quando a celular desligou. (Antes de continuar, eu tenho que descrever a minha reação. Eu senti ódio, raiva e impotência. Depois do ódio e da raiva veio uma tristeza profunda. Depois da tristeza uma vontade de salvar o papai.) O médico disse para meu irmão que a única opção para o papai era o transplante de pulmão, pois a fibrose estava extremamente avançada. Quando eu escutei isso, eu imediatamente disse que doaria metade do meu pulmão. Houve uma pequeno discursão, mas acabei convencendo a todos que eu era a melhor opção. Apesar de mais velho, eu era o único atleta da família. Ciclista, eu pedalava 600 km por semana. Poderia viver muito bem com metade do pulmão.

Meu pai tinha mais de 70 anos, papai não poderia entrar na fila de transplante. Logo, nada de transplante.

Momentaneamente a família ficou paralisada, (eu queria bater em alguém, brigar, quebrar alguma coisa…, sangue espanhol, fazer o quê) até que meu irmão do meio Aulo Rafael ligou para um amigo em São Paulo. Tal amigo indicou outro médico fera, Ph.D. em pneumologia.

E lá fomos todos nós com alguma esperança. Nada, mesmo diagnóstico. A visão do médico era qualidade de vida. Já que a doença não tinha cura, o papai tinha que ter o melhor final de vida possível. Para mim era lógico.

A medicação prescrita era simples. Brônquio dilatador, remédio para tosse a base de opiáceos e cortisona.

Meu pai fez uma espirometria (mede a capacidade pulmonar) em fevereiro, fez outra em março e mais uma no final de abril. Como matemático e curioso pelo futuro do meu pai eu fiz um gráfico da capacidade pulmonar em função do tempo. Pelo meu gráfico, meu pai faleceria em meados de agosto. (Com enorme tristeza eu afirmo que estava correto e digo mais, é muito doloroso você prever as coisas de maneira matemática e lógica e acertar.)

Papai começou a precisar de auxílio para pequenas coisas, como o banho por exemplo. Eu e meus irmãos combinamos um revezamento. Eu dava banho no papai 3 vezes por semana e cada um dos meus irmãos 2 dias por semana cada.

Foi uma benção poder cuidar do papai. Lavar o seu cabelo, suas costas, seus pés, … Depois vesti-lo, fazer massagem nos seus pés e vestir suas meias de lã.

O problema é que o pulmão do papai sempre estava piorando. Os banhos foram ficando mais difíceis e demorados. Papai não tinha mais forças para se levantar e ficar de pé demandava muita energia.

Eu lembro que nós compramos um concentrador de oxigênio que logo não servia mais para nada. Começamos a comprar cilindros enormes de oxigênio. (A saturação do papai caia para 40 sem o oxigênio e com subia para 90.)

A cada banho eu via meu pai definhar. (A ausência de oxigênio no organismo provoca o catabolismo dos músculos. Com o passar do tempo eu comecei a ver o fêmur do meu pai e a pele escoria pela lateral coxa, eu, literalmente, fechava meu punho no fêmur do papai quando segurava a sua perna. Eu contava todas as suas costelas das costas, começando pelo pescoço.)

Papai sempre piorava e é claro que isso o deixou intrigado. Num dos banhos do mês de julho o papai me perguntou: “Meu filho, eu não estou melhorando, este tratamento deve estar errado. Eu só fico pior.” (Ninguém havia dito para o papai que a doença dele era terminal. Coube a mim dizer. “Papai a sua doença não tem cura. Tudo que nós estamos fazendo é paliativo. É para você ter uma qualidade de vida melhor.” Nós dois estávamos sentados na cama antes de eu dar-lhe banho. Papai olhou para mim e disse: “Então essa doença vai me matar? Eu não vou ficar bom?”. Eu disse: “É pai, essa doença vai te matar.” Comecei a chorar e ele também. O meu querido pai olhou para mim e disse: “Eu não quero que você fique assim”. Me puxou para perto e me abraçou, ficou algum tempo acariciando a minha cabeça e terminou dizendo: “Seja forte.”

No final de semana dos Dias dos Pais, papai piorou muito. No domingo, 14 de agosto de 2016, eu estava as seis da manhã dando banho no papai, ele tinha tido uma diarreia. Ele me disse: “André, eu estou perto de ir embora.” Mudo estava, mudo fiquei.

O grande calvário do meu pai começou as 18:00 horas do mesmo domingo. Com o oxigênio no máximo a saturação não subia de 40 e seu batimento cardíaco estava em 170 por minuto. Papai passou 3 horas assim, até que meu irmão Junior lembrou de um paciente que tinha um aparelho de cpap. O aparelho chegou e o Juninho colocou no papai, foi quando papai ficou mais tranquilo, a saturação subiu para 70 e o batimento cardíaco foi para 90. (A última estimativa da capacidade pulmonar do papai foi de 400 ml. O normal seriam 4 litros. Papai tinha somente 10% do pulmão. Se você não tem noção de 400 ml, basta olhar para dois copos americanos.)

Papai faleceu no dia seguinte as 15 horas do dia 15 de agosto de 2016.

Agora meus caros leitores, vocês devem estar se perguntando qual é a ligação disso tudo com a pandemia. A ligação é muito simples e explícita. Tenha empatia pelas pessoas que estão falecendo por falta de oxigênio (principalmente os que não conseguem ser intubados), tenha empatia pelos enlutados, respeite a pessoa que está do seu lado usando uma boa máscara e preserve o isolamento social. A dor do outro é tão grande quanto a sua pode ser.

 

Por André Eugênio Fernandes.

Prof. de matemática, pós-graduando em Epidemiologia e Saúde e pós-graduando em Estatística Aplicada. Programador em R para estatística e ciência de dados.

 

FILHO DO SENHOR AULO ANDRÉ ACIOLI FERNANDES.

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Juliana Neves

Escrevo com a intenção de mudar o mundo ofertando a verdade para a sociedade. Mas a luta é diária e constante, realmente, vivendo e aprendendo e tendo o jornalismo como meu aliado.