Quem tem medo da Filosofia? Por Maurício Saliba

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A filosofia sempre foi vista como uma ameaça e, desde sua origem, foi perseguida por revelar verdades incômodas ao poder e às massas. Não por acaso, Sócrates, que não inventou a filosofia, mas foi um de seus mais incômodos praticantes, terminou sua vida tomando veneno (cicuta), condenado pelo crime hediondo de ensinar os jovens a pensar.

Em Atenas, berço da democracia, não havia pena para ladrões de galinhas ou corruptos de toga, mas havia sentença mortal para quem ousasse questionar os deuses e expor as contradições da pólis. A filosofia nasceu, portanto, sob suspeita: como atividade subversiva, como um vírus que ameaça a ordem pública e o sossego mental de quem prefere dormir com os olhos fechados.

Séculos mais tarde, Baruch de Espinosa foi perseguido. Sofreu um atentado a facas e acabou excomungado pela comunidade judaica, não porque roubou, matou ou conspirou contra os governantes, mas porque ousou pensar — pior ainda — ousou pensar livremente, sem pedir licença aos rabinos, aos padres e aos comerciantes. Espinosa foi amaldiçoado solenemente, como se fosse um leproso do espírito, um perigoso transmissor de ideias contagiosas. Hoje, é reverenciado pelos intelectuais.

O que tanto incomoda na filosofia? Talvez justamente sua mania de puxar as cortinas, de abrir janelas, de acender a luz quando todo mundo prefere continuar fingindo que a sala está arrumada. A filosofia não cria o caos: ela apenas o revela. E nada é mais insuportável para uma elite política, econômica e religiosa do que ser obrigada a ver sua própria nudez. Quem tem muito a perder teme a clareza, e a filosofia é uma especialista em raios X da alma e da sociedade.

Mas não sejamos injustos com as elites. Elas, ao menos, sabem por que odeiam a filosofia. O que intriga é a aversão do povo em geral. Por que a filosofia não é amada pelas massas? Por que Sócrates não virou herói nacional, mas sim mártir esquecido? Talvez porque conhecer a realidade doa. E, convenhamos, há uma preguiça ancestral em lidar com a verdade. É muito mais confortável viver de dogmas do que atravessar o deserto das perguntas sem resposta.

A filosofia exige coragem, e coragem, infelizmente, não é distribuída em larga escala nas prateleiras do supermercado social. O povo teme a filosofia como se fosse uma bruxa medieval: se ela fala, pode lançar feitiços; se ela cala, é porque está tramando. De todo modo, melhor manter distância. Não surpreende, portanto, que a filosofia, quando chega às escolas, seja tratada como uma tia esquisita da família, aquela que aparece nos almoços de domingo com teorias inconvenientes sobre política, religião e moral.

E, no entanto, nada é mais necessário. Pois a filosofia não é um luxo, é um antídoto. Num mundo saturado de fake news, de manipulações midiáticas, de discursos de ódio travestidos de opinião sincera, só a filosofia oferece instrumentos para separar o real do delírio, a crítica do fanatismo. Claro, isso não agrada a quem prefere manter o público na escuridão — elites que prosperam à base da ignorância, da alienação e do consumo automático de ilusões.

E aqui mora uma ironia ainda mais deliciosa: o que a maioria das pessoas não sabe, principalmente os negacionistas de plantão, sempre tão orgulhosos de suas certezas rasas, é que a filosofia não é um panfleto de comunismo, muito menos um manual de capitalismo. Acreditar que todos os filósofos são de esquerda e comunistas é reflexo da ignorância soberba ou, como sempre digo, da burrice orgulhosa.

Ela não é “de esquerda” ou “de direita”: ela é um modo de viver e de pensar. Ela ensina a suportar as angústias inevitáveis da existência, a atravessar o tédio sem precisar de anestésicos baratos, a resistir aos prazeres vulgares que nos escravizam e, acima de tudo, a conquistar autonomia e liberdade. Enquanto os anticiência pensam que filosofia é doutrinação ideológica, perdem de vista que sua verdadeira lição é aprender a ser humano de forma mais digna e lúcida. Se isso é perigoso, que ao menos tenhamos coragem de correr o risco.

O que se teme, no fundo, não é a filosofia, mas o espelho que ela carrega. O espelho que revela a vaidade dos poderosos e a covardia dos oprimidos. Pois não basta acusar os de cima: é preciso também admitir que os de baixo muitas vezes preferem sua própria prisão às incertezas da liberdade. O escravo, lembrava Nietzsche, aprende a amar suas correntes porque elas lhe oferecem segurança. E a filosofia, essa maldita, aparece justamente para lembrar que a segurança pode ser apenas um outro nome para servidão.

Por isso, é mais fácil odiar a filosofia do que aceitá-la. Ela nos convida a perder ilusões, e a perda é sempre dolorosa. Como não odiar quem insiste em nos arrancar das cavernas? Não é à toa que Platão, discípulo de Sócrates, descreveu a célebre alegoria da caverna: quando alguém tenta libertar os prisioneiros e mostrar-lhes a luz, eles o matam. A filosofia é essa insolência: dizer ao mundo que ele vive acorrentado, que as sombras projetadas na parede não são a realidade. É pedir para apanhar.

E, no entanto, Sócrates, Espinosa e tantos outros preferiram pagar o preço. Preferiram o risco, a morte, o exílio, ao silêncio cúmplice. O gesto deles é um lembrete incômodo: quem tem medo da filosofia, na verdade, tem medo de si mesmo, de encarar a própria responsabilidade diante da vida. A filosofia não oferece respostas fáceis, e por isso é odiada. Mas também por isso é insubstituível.

A elite a odeia porque desmascara suas estratégias de dominação. O povo a teme porque denuncia suas acomodações e seus dogmas. Em comum, ambos preferem que a filosofia seja marginal, suspeita, opcional, “matéria de enfeite” nos currículos escolares. Mas talvez, justamente por ser incômoda, ela seja a única capaz de nos salvar de nós mesmos.

Quem tem medo da filosofia? Todos nós, em maior ou menor medida. Mas é só enfrentando esse medo que podemos, enfim, deixar de ser sombras e nos tornar humanos de verdade.

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Editor Ourinhos Online