Quando a ficção vira denúncia: “Confiar” (2010) e a realidade cruel da internet em 2025 – Por Bruno Yashinishi
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Em 2010, o filme Confiar (Trust), dirigido por David Schwimmer, retratava um pesadelo silencioso: o aliciamento de menores pela internet. Annie, uma garota de 14 anos, é manipulada emocionalmente por um homem adulto que finge ter sua idade. O encontro entre os dois culmina em um abuso devastador — não apenas físico, mas psicológico, emocional e familiar. Quatorze anos depois, esse enredo deixou de ser apenas uma ficção dramática para se tornar uma realidade cada vez mais comum, exposta de forma chocante pelas denúncias do influenciador brasileiro Felca.
Felca, até então mais conhecido por seu humor ácido e vídeos virais, rompeu o esperado e publicou uma denúncia séria sobre a adultização de crianças e a exploração infantil nas redes sociais. O vídeo viralizou, ultrapassando 26 milhões de visualizações, e trouxe à tona o que muitos preferiam ignorar: há crianças sendo tratadas como produtos, expostas a olhares mal-intencionados, e incentivadas por algoritmos que premiam engajamento a qualquer custo.
A conexão entre o filme e o mundo real é perturbadora. Em Confiar, Annie acreditava estar em segurança — afinal, estava em casa, no próprio quarto, diante de um computador. O mesmo sentimento enganoso ronda muitas famílias hoje, que se tranquilizam ao ver seus filhos entretidos no celular. Mas por trás das telas estão milhares de usuários, conteúdos inadequados, convites mascarados e até predadores virtuais. A falsa sensação de controle é, na verdade, uma brecha perigosa.
O mérito de Felca foi justamente tirar esse assunto da invisibilidade. Ele apontou nomes, práticas, e o comportamento permissivo das plataformas digitais que, mesmo com recursos tecnológicos avançados, falham em proteger o público mais vulnerável: as crianças. Não é por acaso. O conteúdo que sexualiza, que choca ou que viraliza tende a render mais tempo de tela — e, por consequência, mais lucro. A lógica da internet não é moral, é matemática.
Como resposta, Felca não recebeu apenas apoio. Sofreu ataques, foi alvo de difamações, precisou acionar a Justiça, processar difamadores, andar com seguranças e enfrentar o lado mais cruel da polarização digital. Ainda assim, venceu ações judiciais, forçou a reativação de seu perfil e iniciou um movimento político e social que ganhou força, com apoio de artistas, parlamentares e da própria opinião pública. Mais importante: fez a pauta da proteção infantil voltar ao centro do debate.
Por que precisamos de um youtuber para fazer esse papel? Onde estão os mecanismos institucionais de proteção? Por que é tão fácil para uma criança cair em redes de exploração digital, enquanto é tão difícil para os adultos perceberem?
Confiar nos força a encarar que o perigo não está apenas no “inimigo externo”, mas na ausência de escuta, na falta de vigilância, na normalização da exposição precoce. Annie só queria ser ouvida, validada, aceita. O mesmo desejo move milhares de crianças e adolescentes hoje, muitas vezes incentivados por adultos que enxergam likes onde deveriam ver limites.
Felca fez sua parte. O cinema já havia alertado. Agora cabe à sociedade decidir se continuará fingindo que não vê. Porque se ainda restava alguma dúvida de que o problema é real, ela acabou. E se confiarmos cegamente que a internet vai “se regular sozinha”, os próximos casos não estarão no cinema — estarão entre nós.
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