“Apocalipse nos Trópicos” (2025): o novo documentário de Petra Costa anuncia as trombetas do fim dos tempos – Por Bruno Yashinishi
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João, o evangelista exilado na ilha de Patmos, anunciou no Livro do Apocalipse a chegada de quatro cavaleiros, arautos da destruição: a Conquista, a Guerra, a Fome e a Morte. Petra Costa, por sua vez, em Apocalipse nos Trópicos, seu mais novo e perturbador documentário, parece também anunciar o avanço desses cavaleiros — só que montados não em cavalos celestiais, mas nas instituições brasileiras, nos templos evangélicos, nas redes sociais e nas urnas.
Aqui, a Conquista veste terno e se apresenta como o Messias do planalto, alimentado por fake news e adoração popular. A Guerra se manifesta nos discursos inflamados, nas ameaças à imprensa, na polarização que fragmenta famílias e vizinhanças. A Fome aparece na destruição de políticas públicas, na criminalização da pobreza, na fome literal que voltou aos pratos dos brasileiros. E a Morte, silenciosa ou barulhenta, caminha ao lado da negligência sanitária, das balas perdidas, da intolerância e do fanatismo.
Em Apocalipse nos Trópicos, Petra Costa não apenas documenta um país em crise, ela o escancara. Com sua já conhecida habilidade de costurar o íntimo e o estrutural, a diretora de Democracia em Vertigem retorna com um filme que parece mais um aviso em neon, o Brasil chegou ao seu juízo final simbólico, e o juiz veste púlpito, tem voz de comando e uma Bíblia nas mãos.
O documentário investiga com precisão cirúrgica a ascensão meteórica da bancada evangélica no Congresso Nacional e a sua fusão ideológica com a extrema-direita brasileira. Mas o que poderia ser apenas um retrato político se transforma em uma autópsia emocional e simbólica do país. Petra expõe como o discurso religioso foi sequestrado e reconfigurado para sustentar uma agenda de retrocessos, sociais, ambientais, culturais e morais.
A presença dos evangélicos na política brasileira, que nas últimas duas décadas passou de coadjuvante a protagonista, é tratada aqui não apenas como um fenômeno eleitoral, mas como um projeto de poder. A “guerra espiritual” promovida por figuras como Silas Malafaia, entrevistado no filme, não se limita ao combate contra demônios metafísicos, ela se traduz em ataques à liberdade de imprensa, à ciência, aos direitos das mulheres, da comunidade LGBTQIA+, e às expressões culturais não alinhadas ao moralismo neopentecostal.
Petra estrutura o documentário como um mosaico de depoimentos e imagens de arquivo, mas o que mais impressiona é o clima de delírio coletivo que ela consegue capturar. Os cultos, as campanhas eleitorais e os pronunciamentos presidenciais parecem orbitados por uma mesma energia, a fé convertida em arma, o medo transformado em ferramenta de controle. É impossível não traçar paralelos com outros momentos históricos em que religião e autoritarismo se abraçaram sob o pretexto da salvação.
Ao lado de Lula, que aparece como voz da resistência institucional, Malafaia surge como o arauto do novo conservadorismo tropical, midiático, inflamado e disciplinado. A escolha de Petra em confrontar diretamente essas figuras cria um contraste chocante entre visões de mundo inconciliáveis, onde o diálogo não apenas fracassa, mas sequer é mais pretendido.
Esteticamente, o filme se vale de uma montagem nervosa e simbólica, que lembra o tom inquietante de um thriller psicológico. Há algo de cinematograficamente apocalíptico ali, um Brasil em ruínas simbólicas, em que as palavras “Deus”, “família” e “pátria” perdem sua inocência e ganham conotações de censura, repressão e exclusão.
Mais que um documentário, Apocalipse nos Trópicos é um manifesto visual sobre o perigo da fé instrumentalizada. Não se trata de uma crítica à religiosidade popular, algo que Petra se esforça para diferenciar, mas sim da sua captura por projetos de poder autoritários e antidemocráticos.
Lançado com aclamação nos festivais de Veneza, Telluride e San Sebastián, e agora disponível na Netflix, o filme já se tornou objeto de debates internacionais. Sua vitória no Festival de Havana não é casual, Apocalipse nos Trópicos é um alerta não apenas para o Brasil, mas para todas as democracias frágeis do Sul Global, onde a fé popular muitas vezes se torna o terreno fértil para cultos de personalidade e políticas regressivas.
A sensação que fica ao final da sessão é de vertigem, não apenas porque Petra nos mostra um país à beira do abismo, mas porque percebemos que muitos já pularam, acreditando que cair é voar, desde que o pastor diga “amém”.
E talvez aí esteja a tragédia.
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