Cartografia da perda – Por Paula Hammel
Há partidas que não soam como adeus. Elas se instalam sem alarde, desalojam o tempo e inscrevem o corpo da ausência no âmago das coisas. O mundo continua, mas de modo deslocado, como se respirasse num ritmo anterior ao gesto. A realidade persiste, mas os contornos se dissolvem, como se alguém tivesse apagado parte da paisagem e deixado só vestígios de um território que já não se habita.
Não se trata de uma ausência visível. Ela é densa, intricada, sem moldura. Não ocupa um espaço determinado, mas reverbera em camadas subterrâneas do pensamento. Instala-se nas pausas das frases, nos móveis intactos, na roupa que não mais se veste. Transforma cada objeto em vestígio. Não brada sua presença: sussurra, emudece, transfigura.
A mente tenta nomear o irreversível. Mas não há palavra que contenha o inominável. A razão tropeça. O tempo falha. E o vocabulário humano se mostra acanhado diante daquilo que já não responde. Nem saudade basta: é raso chamá-la assim. O que resta não é desejo de retorno, mas uma memória que se move sozinha, sem consentimento, sem aviso. Uma memória que respira dentro, como uma brasa que se recusa a apagar.
Tudo permanece e, paradoxalmente, tudo se altera. A paisagem é idêntica, mas o olhar não mais reconhece seus contornos com familiaridade. O que existia em convivência agora só se insinua em vestígios sensoriais — um aroma, um timbre, um gesto ausente. E quando a ausência se torna matéria, ela deixa de ser conceito. Passa a habitar.
Não há consolo. Palavras de conforto são como véus mal alinhados: tentam cobrir o que transborda. A travessia exige silêncio, como se cada passo sobre o chão exigisse reverência. A vivência da ausência verdadeira exige um recolhimento que não é reclusão, mas escuta. Uma escuta tão radical que o som de dentro começa a soar mais alto do que qualquer ruído externo.
A dor não é linear. Oscila entre o que era e o que jamais será. Nenhuma filosofia oferece abrigo pleno. E, mesmo assim, é a reflexão que permite transitar por esse território sem nome. Cada pensamento que se ergue tenta restituir algum sentido. Mas o sentido, por ora, recusa-se a ser capturado. Ele só se insinua, como sombra que antecede o fim da tarde.
Alguns chamariam de vazio, outros de metamorfose. A linguagem falha, mas a vivência se impõe. Não é uma perda. É uma mutação. Não é finitude, é transposição. E o corpo aprende, por fim, a conviver com o que não se resolve. Aprende a caminhar com a presença intangível do que se foi, mas nunca se extingue. A presença se redimensiona, adensa, ultrapassa.
A permanência, agora, se revela em outros registros — nos lapsos do tempo, na maneira com que as mãos tocam as coisas, no modo como o olhar se detém mais demoradamente sobre o irrelevante. Nada é trivial quando se atravessa o inexprimível. A vida muda de frequência, como se o existir ganhasse camadas que só quem já percorreu essa via secreta consegue decifrar.
E, mesmo sem nome, mesmo sem retorno, aquilo que se foi passa a habitar o que é. Já não se pergunta “por quê”, mas “como”. Como continuar. Como reconstruir-se sem amputar-se. Como sustentar a lembrança sem permitir que ela sufoque o agora. Como permitir-se ainda ser, sem deixar de carregar o que foi.
A dor não se encerra. Ela se transforma. Mas jamais será ausência.
Ainda que o tempo avance, ele não cicatriza. Ele apenas acomoda. O cotidiano, por vezes cruel em sua previsibilidade, exige um tipo de presença que fere. Exige que se sorria quando tudo dentro se curva, exige que se fale enquanto o silêncio, imenso, deseja permanecer. O mundo segue seu compasso insensível. Mas há quem, por dentro, esteja em outra órbita, uma estação sem nome, onde as horas não se medem por ponteiros, mas por respirações contidas.
Quem atravessa o que não se resolve não se torna menos sensível, mas excessivamente permeável. O toque do real se intensifica. A flor que desabrocha num canto esquecido da rua. A luz oblíqua que invade o quarto. O som inesperado de uma lembrança. Tudo, subitamente, adquire um peso quase sagrado. A morte ensina a ver. Ensina a decantar.
Aos poucos, o que era cortante se transfigura em algo mais sutil. Não menos profundo, mas menos incisivo. A ausência passa a ser uma linguagem aprendida em segredo. Algo que se pronuncia sem voz, que se escuta sem ouvido, que se compreende por um pacto silencioso entre a alma e o que quase tudo cura. E se vive assim, entre o mundo e o invisível, entre a superfície dos gestos e o precipício sem nome que se abre em cada lembrança.
Não há conselhos úteis nesse caminho. Eiste apenas a travessia. Cada um a faz com os instrumentos que possui. Alguns pintam. Outros escrevem. Alguns silenciam tanto que quase somem. Outros reinventam sua matéria com gestos novos. Mas todos, sem exceção, carregam algo que jamais se traduz por inteiro.
E isso é o que os torna, secretamente, belos. A beleza do que permanece inacabado. A beleza do que não se explica, mas vive.
Por fim, não se trata de aceitar a ausência, mas de metabolizar sua presença quieta. Há existências que não cessam com o fim. Elas transmudam-se em matéria etérea e, de algum modo indecifrável, passam a habitar o próprio tempo. Persistem nas frestas, nas intuições, na vertigem inexplicável que às vezes nos visita ao acaso de um gesto banal.
O verdadeiro vínculo não se dilacera com a morte. Ele migra de forma. Desce ao subterrâneo da alma e ali finca raízes invisíveis. Atravessa o verbo, contamina o olhar, enobrece o gesto. Não há ruptura: há continuidade em outro plano, delicado, irredutível à linguagem.
Seguir adiante não é negar a ausência, no entanto, aprender a conviver com sua densidade. E isso exige coragem. Não aquela que grita, a que sustenta o não visto, dia após dia, como quem aprendeu a dialogar com o que já não responde, e mesmo assim, é escuta.
A eternidade, quem sabe, não encontra na infinititude, mas no que não se extingue dentro. E quem amou profundamente, sabe: há presenças que não precisam de corpo para continuar. Porque certas almas, quando partem, não se vão. Apenas se tornam outra forma de luz.
Paula Hammel
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