Por quem o amor passa e silencia – Por Paula Hammel
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Não é mãe, tampouco é filha. E, no entanto, ocupa um lugar estranho entre o que se gera e o que se herda: o afeto instituído e o afeto construído, entre o sangue e o vínculo sem nome. Seu território é o do quase: quase família, quase rival, quase santa, quase interdito.
A sociedade, em sua preguiça simbólica, cristaliza-lhe o estigma. Torna-a vilã de comédias de fim de noite — oráculo de receitas mal contadas. Repete-a em piadas rasas, sentencia-lhe a fama sem defesa. Mas há algo ali que escapa à superfície. Há uma mulher que viu nascer quem agora se ama fora de si, e que ao ver esse amor migrado, precisa desinventar a maternidade plena para inventar-se num papel que não se ensina: o de permanecer sem possuir.
Entre a nora e essa figura ancestral, o mundo constrói um espelho partido. Nenhuma quer ser a sombra da outra, nenhuma quer apagar-se no reflexo. Ambas são mulheres — e isso basta para que o atrito se insinue. Uma chega primeiro. A outra, depois. Ambas acreditam, em silêncio, que talvez fossem melhores na história se tivessem sido as únicas. Mas não são. E agora, dançam.
O genro, por sua vez, torna-se interlocutor do incômodo. Acolhido com gentileza protocolar, caminha por entre as porcelanas invisíveis de um afeto que não lhe pertence. Ela o observa com os olhos de quem cria algo para o mundo — e teme que o mundo não saiba cuidar. Há um amor ali, mas ele vigia, hesita; tempera-se com o sal da desconfiança e o açúcar de uma esperança muda.
É uma guardiã deslocada. Sabe demais, diz de menos. Sua presença paira — não invade. Mora na memória das coisas, nos modos de cortar o pão, na maneira como se dobra um lençol. É linguagem herdada — sintaxe do afeto, mesmo quando silencia.
Entre os papéis sociais, talvez exerça um dos mais injustos: espera-se dela a entrega sem ruído, a renúncia sem mágoa, a aceitação sem resistência. Espera-se que acolha sem desejar manter, que participe sem intervir — e, por fim, que se ausente com elegância.
Mas há quem rasure o script — quem decida não fingir santidade. Quem ame à sua maneira — atravessada, oblíqua, às vezes rude — e, por isso mesmo, se torne mais humana do que os papéis lhe permitiriam ser.
É espelho do que se teme envelhecer sendo periférica do afeto, central no silêncio. Mas existe um quê de nobreza nisso. Há quem, mesmo sem ser escolhida, permaneça. Não porque precise, mas porque deseja ver o amor que um dia pariu sobreviver no corpo de outro.
E isso, provavelmente, seja o que nós ainda não soubemos nomear.
Paula Hammel
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