O que desejaríamos ser – Por Paula Hammel
Há um instante, tênue, quase imperceptível, entre o tilintar da colher e a sombra que escorre pelas paredes, em que a consciência murmura: *quem, afinal, almejamos ser?*
A resposta, se ousa surgir, chega como brisa: etérea, inapreensível, mas repleta de significados.
Não me refiro aos devaneios infantis que oferecíamos aos adultos como respostas apressadas — vestígios de uma inocência que nos fazia querer habitar luas, bailar em palcos, desenhar no céu com lápis imaginários. A indagação que reverbera agora é outra, mais íntima, mais densa. Um sussurro que ressoa nas dobras mais discretas da interioridade.
Ser — não algo grandioso, mas um fragmento precioso: o segundo que antecede o gesto, o sorriso que irrompe no meio da lágrima, a suspensão entre dois silêncios.
Ou um aroma: pele querida, pão no forno ao entardecer, terra viva após o aguaceiro. Alguns aspiram tornar-se lembrança; outros, presença. Eu, ora sopro de ausência, ora substância plena, transito entre ambos.
Há ocasiões em que anseio ser apenas um banco de praça, confidente de velharias e segredos; ou uma palavra não pronunciada, retida na margem da boca, compreendida sem jamais ter sido dita.
Ansiar por leveza — mas não a superficial. A que se entrega ao vento com dignidade, sem pressa ou temor. Ser o compasso que desacelera o tempo, o olhar que não fere, o adeus que não dilacera.
Desejamos aquilo que falta, mesmo quando tudo aparenta completude: o desvio, a fresta, a nesga de azul em meio ao cinza.
Inteireza, apesar das fissuras. Brandura, mesmo após a aridez. Recomeço, ainda que ao final de um ciclo.
E pode ser que o verdadeiro anseio não resida na chegada, mas na maneira de trilhar a jornada: passos firmes, pensamento errante; alma leve, mas não rasa; coração pleno, jamais clausurado.
O tempo — artífice de silêncios e escultor de ausências — um dia revelará o que sempre nos habitou: ser é verbo em perpétuo desdobramento, um movimento sutil entre o extravio e o reencontro — no outro, no mundo, em si.
Paula Hammel
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