O companheiro traidor – Parte I

Por João Teixeira
O fim do mais famoso agente duplo da resistência armada no Brasil, José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, mostra os (des)caminhos desta vida.
Ou: de como o vinho dos sonhos transforma-se no vinagre dos pesadelos.
“O Cabo Anselmo é um mito, uma coisa que nasceu morta. Criaram um mito para mascarar as responsabilidades em evitar que muitos jovens saíssem matando e morrendo”.
Com estas palavras, o Cabo Anselmo, na verdade um marinheiro de primeira classe, reapareceu, com novas feições, de cabelos e barba branca, no programa “Canal Livre”, da TV Bandeirantes, no dia 26 de agosto de 2009.
Na oportunidade, o odiado delator da esquerda armada aliou-se ao anticonunismo e defendeu-se das acusações.
A trajetória de Anselmo é digna dos melhores filmes policiais.
Ex-presidente da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, do Rio de Janeiro, foi líder da Revolta dos Marinheiros que quebrou a hierarquia militar e culminou no golpe civil-militar de 1964.
Foi cassado, julgado, preso e exilado no Uruguai, onde embarcou para Cuba para fazer o treinamento de guerrilha.
Já era agente duplo desde então?
A dúvida resiste ao tempo.
Anselmo andava fardado como oficial do Exército na ilha de Fidel.
Tornou-se dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no exterior, a organização do comandante da guerrilha no Brasil, o ex-capitáo Carlos Lamarca, e embarcou para cá em 1971.
Espantou-se com a situação de abandono em que encontrou Lamarca, e aí então percebeu a canoa furada em que havia embarcado.
Preso em Sáo Paulo pelos homens do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops, logo de cara fez sua primeira vítima.
O ex-fuzileiro naval Edgard de Aquino, que deixara a militância clandestina e era corretor da Bolsa de Valores, escondia Anselmo em seu apartamento, na Rua Martins Fontes.
Aquino foi preso com Anselmo e presenciou, na prisão, a mudança da água para o vinho.
O milagre secreto não podia ser revelado, por razões óbvias, e Aquino sumiu. É “desaparecido” político.
A partir daí, o companheiro traidor deixou um rastro de mortes em seu caminho.
A “isca” dos policiais foi extremamente eficiente em seu trabalho de agente duplo, para azar de suas vítimas.
“Pescava” em águas turvas, tendo conseguido “fisgar” inúmeros “peixes graúdos” (militantes clandestinos) que tinham a má sorte de encontrá-lo.
“Cínico, cara-de-pau”, como o classifica Telma Lucena, Anselmo escapou várias vezes de ser executado.
Denunciado como agente duplo por vários membros da VPR – muitos não acreditavam nisso – planejaram matá-lo mas não conseguiram justiçá-lo.
Sagaz, audacioso, teatral, sua derradeira façanha resultou na execução de 6 guerrilheiros que tentavam remontar a guerrilha em Recife, inclusive sua companheira, a paraguaia Soledad Barret.
Como “analista de informacoes” do Dops, cargo assalariado e burocrático, usava o codinome “Dr. Kimble”, personagem de uma série famosa na TV da época, “O fugitivo”.
Anselmo instruía policiais civis e militares em palestras.
O “Relatório de Paquera” publicado em Documentos Revelados.com.br é considerado exemplar sobre a forma como atuavam os espiões do regime militar.
Anselmo o escreveu após ter viajado para o Chile, num lance audacioso, onde encontrou -se com dirigentes exilados das organizações clandestinas.
No relatório, narra o contato que manteve com a embaixada cubana em Santiago e as conversas com José Duarte dos Santos, Onofre Pinto (este lhe adiantou 50 mil dólares para remontar a guerrilha) e Maria do Carmo Brito.
Analisava a situação da esquerda em geral e indicava as rotas de retorno dos militantes exilados da resistência.
O delegado Fleury o aguardava com os informes em Uruguaiana (RS).
Depois, pagou-lhe uma operação plástica e deu -lhe novos documentos para que levasse uma vida pacata de cidadão comum.
Odiado pelas esquerdas, que o tiveram na mira mas não puxaram o gatilho, e também pela direita a quem vinha servindo, Anselmo passou a levar outra vida (continua).

Palavras-chave: luta armada; José Anselmo dos Santos; documentosrevelados.com.br

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Letícia Neri