“Andanças” (Quando Quase Tive Medo), na crônica de Jair Vivan Jr.
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Eu era bom em andar na noite, fazer meus corres, sair à caça, cruzava a cidade de ponta a ponta, do Zanforlim ao Panorama, já que para Leste e Oeste era mato e saibro e eu andava bem urbano.
Ainda mais novo, já tinha interesses nos arrabaldes da cidade, em tudo que é canto eu chegava e era bem recebido, no “corredor dos pretos” perto de casa, trafegava pelo chão de barro batido e rachado para cortar caminho, não sem antes parar na casa da dona Augusta e tomar um café, depois seguia para atravessar a linha do trem, mas aproveitava para cumprimentar e trocar ideias e gracejos com as lavadeiras que lavavam para fora no grande tanque coletivo e quaravam a roupa ali mesmo na grama do barranco.
Andar sem rumo de dia parou de fazer parte do meu cotidiano assim que comecei a trabalhar, fora quando fazia serviços externos de bicicleta, ai sim eu despinguelava por tudo que é buraco penetrável das imediações, não era difícil me ver no alto da cidade, mais precisamente deslizando no pátio de piso de paralelepípedos lisos do Posto Bela Vista ou a oeste no saibro que levava à Guaraiuva pelas imediações do aeroporto, lá já era um pouco mais difícil de me ver devido ao poeirão levantado pelas derrapagens e frenagens executadas no caminho.
Mas eu era bom mesmo nas caminhadas noturnas de bar em bar, de treta em treta, meu rumo preferido era a zona norte, parava na Barra Funda onde tinha muitos contatos e dali para a Marcante onde ficava a zona do meretrício, alvo de muitas visitas, local proibido para menores de idade e culminava em fugas quando a polícia chegava, tendo as vezes até que pular o muro do cemitério para se esconder e escapar de uma apreensão que poderia acabar no juizado de menores.
No calor das emoções não sobrava espaço para o medo por estar naquele local, o que não ocorria com nossos perseguidores que nunca se atreviam em continuar as buscas no interior daquela casa de mortos.
Tais proezas me deram fama de corajoso, também herdada de meu avô que era de encarar assombração e meu pai, hábil em lavar defunto quando chamado as pressas.
Daquela simples caminhada noturna de quem matou aulas e é muito cedo para ir para casa, quase cavei minha cova no sentido de comprometer minha imagem.
Tinha traçado um trajeto até o final da Gaspar Ricardo, ao chegar à bifurcação da casa da Carioca, manteria a esquerda mirando a casa da Isabel à direita e seguiria até a esquina com a rua da Boate da Dolores, de lá voltaria, sem maiores intenções ou pretensões. A casa da Isabel era o nosso melhor ponto de fuga, ela nos dava cobertura e nós vasávamos para a Estrada Oficial pelos fundos de seu terreno e dali era só ganhar chão para o centro).
Nunca diga “eu não” se ainda não viveu a pior experiência de sua vida. Nos passos iniciais na calçada do cemitério, antes de concluir o primeiro gomo do muro ainda baixo de dar para enxergar as cruzes e os santos dos túmulos mais avantajados, senti uma sensação muito pouco experimentada por minha pessoa até então.
Temi estar com medo, fixei o olhar reto evitando a todo custo angular para a esquerda, mantendo os passos firmes.
Mas quem não vê cara, vê assombração, ouvi passos, um murmúrio, um escarro e um apito
e por cima do muro vi o branco na fachada do sorriso do coveiro Zé Bonito, não esperei para ver se ele estava só ou mal acompanhado e ao ouvir também o trotar de um cavalo com ferraduras, pendurei implorando carona no “balaio de puta” que retornava para o centro, sem fazer nenhum comentário e guardei para sempre o segredo sobre o dia em que quase tive medo.
… JVivanJr.